Por amor ao cinema
Sérgio Augusto, crônica, O Estado de S. Paulo
Sérgio Augusto
25 Julho 2015 | 02h 00
Os cinéfilos da minha geração, não importa onde morassem, compartilhavam os mesmos hábitos e as mesmas manias. Anotavam num caderno os filmes assistidos e os qualificavam com notas ou estrelinhas. Os mais caprichosos ilustravam tais registros com uma colagem dos programas distribuídos na porta dos cinemas e os anúncios dos filmes recortados dos jornais. O amazonense Cosme Alves Netto fazia tudo isso em Manaus, e porque era bom de desenho, seus cadernos mais pareciam um fanzine. A idade não lhe diminuiu o ardor gráfico. Cosme tinha alma de desenhista de quadrinhos. No bolso de suas guayaberas havia sempre pelo menos duas canetas hidrográficas para qualquer eventualidade.
Alguns desses mementos podem ser apreciados no documentário Tudo por Amor ao Cinema, de Aurélio Michiles, que na próxima semana estreia no Rio, em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Manaus. São 98 minutos de celebração da cinefilia mais pura e culturalmente profícua, tal qual a praticou Cosme, nosso mais atuante e internacionalmente conhecido guardião de filmes e da memória cinematográfica. Por amor ao cinema, Michiles já fizera Que Viva Glauber e O Cineasta da Selva (sobre o pioneiro caçador de imagens da Amazônia Silvino Santos); e agora nos brinda com este retrato do mais apaixonado “colecionador de sombras” que o Brasil já teve.
Colecionar sombras é o que fazem os curadores de filmotecas. A expressão, criada por Paulo Emilio Salles Gomes, decano da espécie no Brasil, não diz tudo sobre o papel mais abrangente que curadores especiais como Cosme, o francês Henri Langlois e o próprio Paulo Emilio exerceram à frente de suas respectivas cinematecas. Mais do que “membros de uma sociedade secreta e clandestina” dedicada ao “crime de amar e proteger o cinema”, foram inestimáveis agitadores culturais. Promoviam exibições de filmes fora do circuito comercial, discussões sobre linguagem, estética e política cinematográfica.
Eram, acima de tudo, intelectuais aglutinadores.
Ao estender sua militância cultural à revolta dos marinheiros, em março de 1964, projetando para os amotinados O Encouraçado Potemkin, Cosme entrou para o índex dos militares que, dias depois, derrubariam o governo Goulart. Cinco anos mais tarde, foi preso e torturado. Nem por isso, deixou-se intimidar pela repressão da ditadura. Assim como Langlois salvaguardou filmes até debaixo da cama durante a ocupação nazista, Cosme abriu os porões da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio para abrigar filmes perseguidos e proibidos pelo regime, arquivando-os com títulos falsos, para enganar a polícia. Quem poderia supor que as latas de A Rosa do Campo contivessem os negativos do primeiro Cabra Marcado Para Morrer?
Por ser de esquerda, um católico marxista, com estreitas relações com o pessoal de cinema de Cuba e do Leste Europeu, muitos supunham que Cosme tivesse um paladar engagé, mais afeito a “filmes politizados”, de denúncia e contestação. Nada disso. Ele adorava e conhecia a fundo seriados e fitas de horror e ficção científica. Planejamos um livro a quatro mãos sobre filmes de temática nuclear, pomposamente intitulado O Cinema da Véspera Atômica, que ficou nas anotações e na filmografia, meticulosamente levantada por ele, repleta de Flash Gordons, cientistas loucos, mutantes e Godzilas.
Não se lembrava do primeiro filme que vira na vida – desconfiava ter sido uma versão de O Conde de Monte Cristo –, mas nunca se esqueceu do impacto que lhe causara a cena na sala de aula de O Menino dos Cabelos Verdes, primeiro filme de Joseph Losey, uma alegoria sobre a discriminação racial (e capilar) e os horrores da recém-finda guerra mundial. Seu filme preferido era Cantando na Chuva e seu ídolo, Gene Kelly. Por uma coincidência poeticamente cinematográfica, Cosme e seu ídolo morreram no mesmo dia, 2 de fevereiro de 1996. Cosme acabara de completar 59 anos.
Ficamos amigos em 1960, depois de uma tola polêmica, envolvendo a seleção de determinados filmes para uma mostra dedicada ao cinema francês, no GEC (Grupo de Estudos Cinematográficos) da União Metropolitana de Estudantes, cineclube que Cosme fundara três anos antes e que dividia com a Cinemateca do MAM o lazer da moçada cinéfila da era JK. Critiquei a mostra no jornal estudantil O Metropolitano, também ligado à Umes, Cosme defendeu suas escolhas com firmeza e elegância, e, porque tudo que fazíamos era por amor ao cinema, selamos uma amizade mais sincera e consistente que a de Rick Blaine com o capitão Renault.
Trabalhei antes dele na Cinemateca, ainda na gestão de Moniz Vianna, como assistente de curador, ao lado de Walter Lima Junior. Cosme foi o quarto na sucessão de curadores; sucedeu, em 1965, a Fernando Ferreira, que fora precedido por José Sanz e a dobradinha Moniz Vianna-Ruy Pereira da Silva. Com Cosme, a Cinemateca expandiu-se aqui e lá fora, ampliou seu acervo, diversificou suas atividades, consolidando-se como um núcleo irradiador de cultura, à imagem da Cinemathèque de Langlois.
Já o conheci bonachão, mas ainda sem guayabera e charuto em riste, com aquele ar de soberano chinês herdado dos índios que lhe notou Eduardo Coutinho. Viera para o Rio estudar filosofia, podia ter ficado rico cuidando dos negócios do pai, no Amazonas, mas, ao saciar uma curiosidade (onde estavam os filmes que lhe encantaram a infância?), descobriu sua verdadeira vocação.
Numa entrevista para a TV, quatro dias antes de seu coração parar de bater para sempre, Cosme queixou-se a Antonio Abujamra não dispor de tempo para assistir aos filmes que agora tinha à disposição. É um dos momentos mais tocantes do documentário de Michiles, que com engenho e sensibilidade de cinéfilo reconta um bom pedaço da história do cinema através da biografia de Cosme, e vice-versa.
Cosme ora é Domingos de Oliveira (no documentário sobre o Cinema Novo que Joaquim Pedro dirigiu para a TV alemã em 1968), ora é Reginaldo Faria (torturado em Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia), ora é Joel Barcellos (idem, em Jardim de Guerra), ora é Martin Lassale (fugindo da polícia em Pickpocket) e até George O’Brien (em Aurora, quando este se veste às pressas para ir atrás de Margaret Livingston). Não é preciso identificar todas essas referências para entender suas rimas e alusões. Mas quem as identificar terá, com certeza, deleite redobrado.
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