No final de 1965, tinha 13 anos.
O cineasta Glauber Rocha desembarcou em Manaus, é possível que tenha sido o maior acontecimento no meio cultural da cidade.
Foi há muito tempo. Quase 50 anos atrás. Dele pouco sabia, havia sido levado pelo Beto, meu irmão mais velho, querendo me conscientizar das questões sociais do Brasil me fez assistir o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Ainda me lembro muito bem daquela tarde no cine Avenida, é algo que continua fresca na memória.
Logo na entrada do Cine Avenida o cartaz do filme me chamou a atenção, achei belíssimo, um sol enorme sobreposto pelo rosto do cangaceiro com as cores vermelha e amarelo e o título:
“DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL”.
Era um título irreverente para os padrões morais no qual vinha sendo educado, na minha casa não se podia falar essa palavra: "diabo".
Assim que começou o filme comentei com o meu irmão, “o filme é preto e branco”. E quanto mais o filme avançava mais ficava arrebatado, mesmo que em determinadas cenas ficasse sem saber o quê realmente ele queria dizer. Na primeira sequencia um sertanejo ao reagir a agressão do seu patrão-fazendeiro mata-o a golpe de facão. A música cresce, épica e nos leva a solidarizar-se com atitude daquele personagem. Em outro momento quando se ouve a musica tema “o sertão vai virar mar, o mar vira sertão/ está contada a minha historia verdade imaginação...”, a adrenalina se espalha pelo corpo sob o forte impacto da forte voz de barítono do cantor (Sergio Ricardo). ...Surge o sinistro personagem do Antonio das Mortes aquilo me pareceu um dos sete cavaleiros do apocalipse, deu medo e empatia:
“-Te entrega Corisco!"
"-Não me entrego não!”
"-Não me entrego não!”
"Égua, o que é isso?" Foi o que pensei.
Quando o filme acabou saí com uma sensação que havia descoberto o Brasil.
Naquela época aparentemente os manauaras viviam alheios, como estivessem numa ilha, ao largo do “continente Brasil”. Mesmo que tivéssemos uma forte influência nordestina, desde o final do século XIX com a imigração que veio se mesclar com a cultura indígena, conhecíamos a fome somente através das reportagens e da literatura, por exemplo: “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Os Sertões” de Euclides da Cunha.
A fome para nós amazonenses só existia somente lá na caatinga, no agreste dos cangaceiros Lampião e Maria Bonita.
A fome para nós amazonenses só existia somente lá na caatinga, no agreste dos cangaceiros Lampião e Maria Bonita.
Parte deste imaginário nos era alimentado através de um algum parente que havia chegado à floresta amazônica fugindo da seca. E no meu caso foram os meus avós maternos: Joaquim Cândido e Inês Balbina de Oliveira.
Particularmente naquele tempo, mesmo que ainda não tivesse desenvolvido uma consciência política sobre qualquer tipo de crítica ao modelo político-econômico, intuíamos o quanto era perigoso comentar sobre a miséria e a fome do povo brasileiro... dava cadeia. Éramos salvos pela coragem de algum professor ou familiar que faziam referências através da literatura: “Geografia da Fome” de Josué de Castro, mas isto era como fosse um assunto entre membros de uma seita secreta. Não sabia que arte e a política iriam despertar esse sentimento de movimento transgressor ao longo da minha vida ou da minha geração.
Em pleno golpe militar de 1964 o governador escolhido como interventor foi um intelectual amazonense (alinhado à direita), cuja especialidade em suas pesquisas era a Amazônia, ele se chamava Arthur César Ferreira Reis, um “amazonólogo”. Era assim mesmo que ele era identificado. Um dos best-sellers daquela época foi justamente um dos seus livros: “A Amazônia e a Cobiça Internacional”. Paradoxalmente, foi justamente neste governo inconstitucional que aconteceu no Amazonas uma espécie de "renascença cultural", intelectuais e artistas eram celebrados como nunca haviam sido.
AMAZONAS, AMAZONAS
Por exemplo, Glauber Rocha foi convidado pelo governo do estado para fazer um documentário “turístico-institucional” e que tinha como título original:
"A Conquista do Amazonas"
No mínimo estranho pareceu-lhe este convite, o seu talento como cineasta já era reconhecido internacionalmente com uma filmografia que refletia sobre o nordeste brasileiro - o seu povo e a suas crenças. Os filmes “Barravento” e “Deus e Diabo na Terra do Sol” haviam ganhado prêmios e ele próprio ainda aos 24 anos, já era reconhecido como um dos mais talentosos cineastas do mundo. Havia escrito a primeira versão do roteiro do próximo projeto um filme que enfocaria o poder latino-americano do ponto de vista urbano: “Terra em Transe”.
Mas, Glauber encontrava-se diante de outro inusitado e inesperado projeto, filmar a selva amazônica e as suas “vistas encantadoras, o exótico e pitoresco dos cartões postais.”
Verdadeiramente, o jovem Glauber, em 1966, ao 25 anos, neste aspecto não se diferenciava da maioria dos brasileiros, a Amazônia era um lugar que ele desconhecia completamente, nunca lhe havia passado por sua cabeça incluir em suas reflexões essa região. Mas para quem havia saído da cadeia por ter se envolvido numa manifestação contra o ditador-presidente Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, nada mal um retiro naquela longínqua região brasileira, e ainda mais ganhando uma grana para não somente pensar sobre o seu próximo longa-metragem, mas também ficar um pouco fora do eixo das exposições do jogo político contra a ditadura.
A imprensa amazonense celebrou a chegada do “do mais afamado cineasta brasileiro”.
A imprensa amazonense celebrou a chegada do “do mais afamado cineasta brasileiro”.
Entre as filmagens em Manaus, arredores da cidade de Manaus e Itacoatiara, Glauber topou fazer um bate-papo no Cine Clube GEC - Grupo de Estudos Cinematográficos e que tinha nada menos este título:
“A IMPORTÂNCIA DO CINEMA COMO LINGUAGEM NA COMUNICAÇÃO ENTRE OS POVOS, A FORMAÇÃO DO CINEMA BRASILEIRO, SUA NECESSIDADE COMO EXPRESSÃO FUNDAMENTAL DA NOSSA CULTURA E OS ÊXITOS ALCANÇADOS PELO CINEMA NOVO”.
Acreditem se quiserem.
Depois da exposição Glauber viu-se diante de ouvintes que questionaram os objetivos reais da sua estada em Manaus entre outras indagações, perguntaram-lhe por que realizar um filme institucional ou “o quê tu achas do marxismo?”
Glauber, apesar de jovem tinha um discernimento de quem já havia vivido séculos, portanto um gato escaldado, convidado oficial e diante daqueles jovens e inquietos esquerdistas amazonenses, considerou a pergunta uma provocação e respondeu-lhes:
“- Uma merda”.
Enquanto como num plano sequencia desmontava pacientemente uma caixa de fósforos, sem mesmo encarar a platéia.
Glauber desconhecia absolutamente a Amazônia e a sua realidade, tudo que sabia nada mais era do aquilo que as pessoas em geral também sabiam.
A Amazônia dos crocodilos, araras, índios selvagens e o rio Amazonas, era o quê ele escrevia nos "cartões postais" enviados a sua filha Paloma, aí fica muito claro o domínio desta realidade imaginada. Para Glauber fora as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, metrópoles marcadas pela modernidade econômica e arquitetônica o restante do Brasil compunham o barroco brasileiro. Tal foi a sua surpresa quando desembarcou naquela Manaus anos 60, art nouveau.
O DIA QUE ENCONTREI GLAUBER
Numa oportunidade única tive outro encontro com Glauber, desta vez nossos caminhos se cruzaram em Lima-Peru (1973). Encontrava-me percorrendo de carona a América do Sul, vinha do Chile-Allende e no Peru-Alvarado, aí encontrei Glauber, ao acaso na Praça do Sol, no bairro de Miraflores, foi quando passamos uma semana juntos ouvindo falar pelos cotovelos feito uma metralhadora. Glauber havia passado pelo Chile, vindo de Paris, Roma, Cuba. Pensava realizar um filme com Norma Benguel. Encontrava-se revisitando a memória nacional ao vivo, tinha estado com Luis Carlos Prestes em Moscou, com Miguel Arraes na Argélia, João Goulart no Uruguai e tantos outros personagens que marcaram a história brasileira no século XX.
Ele se encontrava zerando todos seus conflitos e dissabores com a política brasileira, seja a esquerda ou a direita, queria compreender por que um país como o nosso com tantas oportunidades históricas ainda não havia dado certo?
Logo que soube que era amazonense ele comentou sobre “Amazonas, Amazonas” e para minha perplexidade afirmou ter sido uma das melhores experiências da sua vida, aquele que colaborou para compreender o Brasil. Ao final levou-me para conhecer Darcy Ribeiro e Berta Ribeiro, antes que nos despedíssemos ainda tive a chance em lhe afirmar o quanto tinha significado aquele nosso encontro nos Andes.
Dois meses depois, retornado ao Brasil quando desembarcava no aeroporto de Brasilia, vindo de Manaus sou sequestrado e preso pelos orgãos de repressão militar aonde sou obrigado a explicar o inexplicável, por exemplo porque havia encontrado com Glauber Rocha e Darcy Ribeiro no exterior? Eles, não levaram a sério a minha resposta:
"- Por puro prazer."
(palestra: CICLO DE CINEMA E PSICANÁLISE - América Latina Sem Fronteiras, 22 maio a 16 outubro 2011- Cinemateca Brasileira, São Paulo)
2 comentários:
grande texto, aurelio. saboroso resgate de dois momentos que iluminam o personagem (glauber) e sua relação com a amazônia e com o brasil de modo geral. abração.
...sim, uma vigem no tempo de norte a sul, leste a oeste na geografia da memória. Obrigado pelo comentario. abs
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