O AUTOR E A SUA ÉPOCA
É um desafio intelectual falar sobre esses dois ícones – Silvino Santos (1886-1970), pioneiro do cinema amazônico-brasileiro e Roger Casement (1864-1916), mártir e herói irlandês. Graças a algumas coincidências conseguimos religar fios invisíveis que tornam esses personagens parte de uma mesma sintonia: a borracha amazônica.
Em 1997 realizei um filme-documentário “O Cineasta da Selva“ (The Filmmaker of the Amazon) que é uma cinebiografia sobre este pioneiro do cinema (1). Ao iniciar a produção deste filme desconhecia a relação direta entre estes personagens, mas na medida em que avançava na pesquisa a convergência dos seus interesses coincidiam, mesmo que cada um deles tivesse compreensão relativa sobre os reais motivos em que se encontravam. Por um lado Santos, mantinha como foco quase exclusivo a sua sobrevivência como profissional, enquanto Casement já vinha de um antecedente denunciador das atrocidades cometidas nos seringais do Congo-Belga, era motivado por elaborados e sofisticados princípios éticos e políticos. E não que Santos não os tivesse também, mas em seu caso a ingenuidade do curioso olhar fazia prisioneiro dos argutos interesses geopolíticos da borracha.
O fato é que esses dois personagens lidaram com o apogeu do ciclo econômico da seringueira, dezenas de anos depois nasci e cresci em Manaus - entre os anos 50/60 em plena paisagem agônica da borracha. No meio daquelas ruínas, a minha geração, ainda adolescentes, despertava para a consciência política e existencial do mundo, um dos fatos que nos fazia pensar sobre a nossa região era o episódio do roubo das sementes das seringueiras pelos ingleses, levadas para Kew Garden (Londres) e depois cultivadas no sudeste asiático. Esta era, segundo comentava-se em nosso dia-a-dia amazonense, a única causa da nossa decadência econômica.
E a Amazônia? O quê tem haver com toda essa história?
Com certeza tem muito. Diríamos que a Amazônia faz parte desta curiosa relação da invenção do cinema com a borracha, desde a sua origem o cinema tem forjado um imaginário sobre a Amazônia como parte das idiossincrasias e panacéias da humanidade. As histórias e estórias sobre eldorado, biodiversidade, biopirataria e conflitos diversos das suas riquezas naturais tem servido de inspiração para imaginativos roteiristas, estes a incluem como enredo de todos os tipos de intrigas que fascinam a humanidade, desde monstros pré-históricos, cientistas malucos, intrépidos aventureiros ao sensacionalismo relacionados às questões referentes à preservação ambiental desta região.
Silvino Santos e Roger Casement, sobre eles criou-se um corolário de lendas como um cipoal selvático. O cinema e a borracha colocaram-lhes numa paralela perspectiva causada pelos conflitos dos interesses geopolíticos da economia da borracha. Fez a história que tivesse se encontrado, mas mesmo assim um e outro não ficaram se conhecendo. Estou me referindo ao irlandês Roger Casement, diplomata e ativista político e ao cineasta pioneiro Silvino Santos, cuja produção de filmes documentários sobre a Amazônia é um dos maiores legados da paisagem natural e humana da Amazônia.
O CINEASTA E O DIPLOMATA MILITANTE
Esse inusitado encontro dar-se quando se acirra a disputa pelo monopólio/diversificação da exploração do leite da seringueira, necessária para o grande salto da revolução industrial final e começo dos séculos XIX e XX. A borracha da Amazônia encontrava-se no centro do mundo, mas sob um eficiente cartel controlado pelo império britânico, enquanto que a invenção e a industrialização dos veículos motorizados encontravam-se nos Estados Unidos da America do Norte. Essa realidade servirá como cenário de disputas dissimuladas e outras vezes abertas. Neste sentido o cinema de Silvino Santos e o protagonismo diplomático de Roger Casement é uma conseqüência direta do lado negro desta disputa, sobretudo no que se refere à denúncia de maus-tratos aos coletores (trabalhadores) de látex, principalmente a população indígena. Aliás, um segredo de Polichinelo, toda a cadeia produtiva (da coleta a comercialização) se encontravam coniventes com esses crimes. Mesmo que Silvino Santos e Roger Casement tivessem estado juntos no cenário do polêmico episódio do “rio Putumayo”, um e outro talvez não tiveram oportunidade de trocar palavras, não somente pelo entrave do idioma, mas também por cada um deles estarem focados em transmitir aos seus superiores a veracidade dos relatos sobre os escândalos relacionados aos seringais de D. Julio Cesar Arana. Na página 40 dos inéditos manuscritos (2) de Silvino Santos ele escreve:
“Um dia apareceu lá (o cônsul do Peru em Manaus no Studio de Silvino Santos – N. Autor) e convidou-me para uma visita ao Putumayo para tirar fotografias dos índios, aceitei. Ia ganhar 40 libras ouro e todas as despesas por conta da Peruvian Amazon Company, D, Julio Cesar Arana era um dos grandes acionistas.”
“Havia umas questões do Peru e Colômbia, mais tarde houve a guerra Peru e Colômbia, o Peru perdeu aquela região" (Putumayo - N. Autor).
"Nessa viagem ao Putumayo, 1912, veio o Cônsul Americano, Cônsul Inglês (Roger Casement – N. Autor) (...). Essa viagem durou um mês, tirei muitas fotografias interessantes. A caravana foi investigar as atrocidades que os brancos faziam aos índios, chegaram à conclusão que eram intrigas políticas do governo da Colômbia (...).”
Mas antes que entremos especificamente neste assunto, aproveito a oportunidade em que se re-pensa sobre a importância de Roger Casement (aqui se encontram profissionais mais qualificados para falar sobre ele), me deterei à reflexão sobre as curiosidades e metáforas sobre a relação entre a invenção do cinema e o ciclo da borracha na Amazônia. Um deles, talvez aquele que sinaliza como somos formados por intrigantes informações, estou me referindo a obra clássica “História Econômica do Brasil” de Caio Prado Júnior publicada em 1945, onde a história brasileira é contada sob o ponto de vista marxista. Em suas 366 páginas, Caio Prado Junior dedica algumas delas para analisar a economia da borracha da Amazônia, inclusive não recorre a expressão “Ciclo”, ele escreve:
“(...) A riqueza canalizada pela borracha não servirá para nada de sólido e ponderável. (...) “O drama da borracha brasileira é mais assunto de novela romanesca que de história econômica.”
Infelizmente esse notável historiador brasileiro conseguiu apenas reafirmar aquela máxima do Brasil visto do Atlântico, o país continental onde floresceu o pau-brasil, a cana-de-açúcar, o ouro e o café, mas manteve a Amazônia à margem da história.
Em 1910, portanto, 35 anos antes da análise de Caio Prado Junior, a ativista e pensadora comunista polonês-alemã Rosa Luxemburgo, em seu livro “A Acumulação do Capital”, já havia identificado no modo e nas relações de trabalho que os ingleses estavam implementando em todo sistema produtivo e comercial na Amazônia, - a sinalização da nova estratégia de acumulação do capital. Segundo Rosa Luxemburgo, a “tigelinha” e o “machadinho” eram concebidos mediante empréstimo e os alimentos eram computados como dívida em livro-caixa contra os quais os seringueiros deviam apresentar o produto obtido. Enquanto não quitasse a dívida, o seringueiro não podia deixar a terra. A essa modalidade de dívida Rosa Luxemburgo denominou, “a escravidão do débito” - um evento capitalista do início do século XX. A dissimulada relação de domínio onde as pessoas se mantêm dependente através da dívida.
(Recentemente a economia mundial foi abalada com a aventura econômica dos “empréstimos subprime” – um eufemismo da “escravidão do débito”, antevista por Rosa Luxemburgo um século antes.)
A história da Amazônia é marcada pelo ciclo econômico da borracha, onde muitas perguntas ainda exigem respostas, alem daquelas que recorrem a simplificação dos fatos romanescos - loucura, delírio, luxúria e todas aqueles relatos que dão lhe conteúdo exótico. Como já disse faço parte das gerações de amazonenses nascidos até no final dos anos sessenta, posso dizer o quanto fomos marcados pela paisagem perturbadora deixadas pela decadência econômica da borracha.
A borracha natural continua produzindo riqueza e exercendo uma importância estratégica, ainda hoje o consumo deste produto é exponencial mais de 10 milhões de toneladas ano. O Brasil e, sobretudo os seringais extrativistas da Amazônia quase nenhuma importância tem nesta produção, apesar de ainda exercerem fascínio e referência de luta pela preservação do meio ambiente.
Continuamos despertando interesses geopolíticos, recaem sobre a nossa região o papel primordial no equilíbrio do bem estar planetário, a Amazônia é permanente assunto relacionados a ciência, economia e escândalos relacionados aos conflitos de terra e a biopirataria.
Um dos mais rumorosos episódios relacionados ao ciclo da borracha refere-se à violência praticada contra os seringueiros do Rio Putumayo. Em 1907 dois norte-americanos de 21 anos, Hardenburg e Perkins, eram engenheiros de ferrovia recém formados, resolveram conhecer alguns países da América do Sul e como prioridade escolheram navegar pelo rio Amazonas. Infelizmente Perkins pegou malária, ele e Hardenburg viram-se obrigados a pedir socorro num seringal do rio Putumayo de propriedade da companhia inglesa Peruvian Amazon Rubber Company e cujo sócio era o peruano Júlio Cesar Arana. Naquela época o Putumayo era uma região litigiosa entre o Peru e a Colômbia. Neste lugar os dois aventureiros não só presenciaram, mas como também ouviram relatos sobre a violência exercida sem piedade contra indígenas obrigados a trabalhar na coleta do precioso leite vegetal.
Esse hediondo modo produtivo fez o antropólogo Michael Taussig afirmar que os horrores da selva e da selvageria foi essencial à organização do trabalho de exploração da borracha na região do Putumayo:
“(...) crucial é entender como essas histórias operaram, através do realismo mágico, a criação de uma cultura do terror que dominava tanto os brancos como os índios”.
Mesmo antes dos escândalos relacionados ao Rio Putumayo ocupar as manchetes da imprensa mundial, os relatos de violência nos seringais, ao menos na Amazônia não era nenhum segredo, a única diferença que ninguém havia ousado registrar e denunciar. Como nos dias atuais, é muito comum alguém ter registrado algo proibido, secreto, íntimo da privacidade de alguma pessoa ou de um fato, mas não naquela época não era bem assim. O jovem norte-americano Walt Hardenburg teve a ousadia de utilizar a sua câmera fotográfica para registrar o que viu – aquele seringal era conforme comentavam seus moradores “um paraíso do demônio”. (Uma câmera fotográfica naqueles tempos não era nada fácil de se esconder, ao contrário nos dias de hoje).
Quando finalmente o relato de Hardenburg juntamente com as fotos foi publicado na imprensa européia sob o título “O PARAÍSO DO DIABO: UM CONGO COM PROPRIETÁRIOS BRITÂNICOS” causou um estrago considerável. Entre outras denúncias ele escreveu que “no Amazonas existia uma só Constituição, é a Winchester, e um só artigo, o artigo 44”, e segue uma narrativa onde descreve um macabro cenário dominados por sádicos feitores que escravizam e crucificam os insatisfeitos, assassinatos indiscriminados de mulheres e crianças, cães endemoniados alimentados por carne humana. Veja, a manchete aponta o dedo em direção ao “império britânico”.
E, na medida em que os responsáveis pela Peruvian Amazon Rubber Company reagiam a essas denúncias mais detalhes eram revelados, obrigando personalidades políticas, artistas e religiosas manifestarem-se. O Vaticano através do Papa Pio X, exortou as missões religiosas na América do Sul a apoiar espiritualmente os trabalhadores dos seringais. Não havia outra alternativa para o Império Britânico, buscar uma saída sem que o sangue daqueles trabalhadores atingisse as jóias da realeza.
O dedo acusador voltou-se unicamente para o parceiro latino americano, o peruano Julio Cesar Arana, como quisessem dizer, “sim a culpa é toda dele, somente ele foi o causador desta ignomínia”. Pelo lado dos ingleses foi destacado o embaixador britânico no Rio de Janeiro, Roger Casement, ir pessoalmente investigar in loco os fatos. Por seu lado, Arana (cidadão probo de Manaus, era membro ativo da Associação Comercial do Amazonas-ACA), vendo-se sozinho, foi aconselhado pelo cônsul peruano em Manaus a contratar os serviços do jovem fotógrafo Silvino Santos, este considerou que havia tirado a sorte grande, iria realizar um trabalho de vulto, segundo relata em suas memórias (inéditas). O trabalho fotográfico chegou a ficar exposto em Londres, mas não despertou nenhuma compaixão ou simpatia, o veredicto já havia sido dado, queriam a cabeça do culpado, e o culpado era um só, o peruano Julio Cesar Arana.
Arana sem ninguém para dialogar, refugia-se na Suíça aonde a sua esposa abalada pelo escândalo entrara em depressão. Ele não desiste, quer provar que é inocente e contrata Silvino Santos para fazer um estágio, em Paris, nos estúdios da Pathe-Frere e nos laboratórios dos irmãos Lumiére. Arana queria um filme que mostrasse o quanto zelava por seu patrimônio na longínqua Amazônia, a sua estratégia estava explícita em suas declarações públicas: “como poderia maltratar um trabalhador, se ele representa o bem precioso que rende lucros nos negócios?”.
Silvino Santos pareceu-lhe uma táboa de salvação, neste caso tudo aconteceu como Arana havia premeditado, mas havia um detalhe que lhe escapou, ou que não tinha como controlar, por exemplo, os complexos interesses da economia da borracha. O monopólio começava a mudar de mãos, a crescente demanda de produção e consumo descartava o látex dos seringais extrativistas da Amazônia, enquanto que os seringais cultivados na Sudoeste Asiático germinavam, produzia conforme as necessidades do mercado mundial, e melhor, não havia índios selvagens, insetos, malárias e se encontrava mais perto do complexo militar do Império Britânico. Sim, as seringueiras do sudeste asiático era fruto daquela ação de biopirataria feita em 1876 quando foram contrabandeadas 70 mil sementes de seringueira para Kew Garden.
No meio daquele cenário desesperador Silvino Santos conheceu Anita, a sobrinha de Arana. Casaram-se e foram passar a lua de mel filmando o documentário “Rio Putumayo”, era o ano de 1912. A Amazônia dava adeus ao fausto da borracha, mas por outro lado e por causa disso Silvino se tornou um pioneiro do cinema e deixou um legado que não se pode descartar jamais, é um dos únicos testemunhos fílmicos daquilo que aconteceu nesta região a partir de uma única planta do banco genético amazônico – o fausto da borracha. Ironicamente e simultaneamente o renomado defensor dos direitos humanos, Roger Casement, por conta do seu envolvimento em defesa da soberania irlandesa, era preso, perdia o cargo de diplomata, as condecorações e condenado à forca sob acusação de alta traição.
- Qual o legado de Roger Casement?
Eis uma pergunta que terá resposta ao longo deste Simpósio, mas já sabemos que sua a morte não foi em vão. Desde as conquistas da Irlanda em direção a sua emancipação como também passado mais de um século o seu relato sobre o trabalho escravo na Amazônia é uma referência permanente, e por mais incrível que pareça esta realidade é também recorrente, muitas daquelas denúncias de maus-tratos continuam a assombrar nosso cotidiano.
Ao cruzarmos a linha do tempo constatamos que a escravidão foi abolida do mundo, ao menos oficialmente, ninguém mais, governos ou empresas se arvoram em declararem-se escravagistas, mas ainda, fontes oficiais afirmam existir esta prática violenta em se acumular riqueza. A estimativa alcança mais de 25 milhões de escravos no mundo, distribuídos pelos continentes do planeta.
Seguindo aquele raciocínio analítico de Rosa Luxemburgo quando denomina de “escravidão do débito” a exploração da borracha amazônica, não foi coincidência o estado de o Amazonas ter abolido a escravidão quatro anos antes da Lei Áurea de 1888. Um dos fatores que impulsionaram que este fato acontecesse antecipadamente do resto do país foi à exploração da borracha, não havia meios que pudesse impedir os trabalhadores-escravos procurar a sua liberdade embrenhados na selva.
Somava-se ainda a diminuta mão-de-obra local, somente a população indígena não dava conta da demanda crescente da coleta do látex que cada vez se distanciava das margens dos rios para serem localizadas no meio da floresta. Logo se encontrou uma solução, foi enviado mais de 150 mil nordestinos atingidos pelas secas prolongadas aos seringais extrativistas. Outra coincidência a maioria eram do Ceará, justamente o estado brasileiro que junto com o Amazonas havia abolido oficialmente a escravidão.
Passado mais de um século os interesses de uma economia predatória continuam a ameaçar a existência desta floresta, mas como já disse multiplicou-se também a consciência em sua defesa. Surgiram expressivos líderes como Chico Mendes e Marina Silva, acreanos descendentes daquelas centenas de milhares de nordestinos que vieram coletar borracha no Acre, um território conquistado (à revelia do governo central) pelos seringueiros contra a presença da Bolivian Syndicate, uma organização multinacional que tinha como estratégia criar um enclave empresarial na Amazônia. Tanto Chico Mendes como Marina Silva, um como o outro, conheceram nos seringais "a mais criminosa organização de trabalho", segundo Euclides da Cunha.
Em 1988, Chico Mendes foi assassinato por conta da sua luta em defesa da floresta amazônica, enquanto Marina, hoje é a primeira candidata à presidência da Republica nascida e crescida na Amazônia. Mesmo que a sua chance de vitória seja mínima, não será irrelevante o seu protagonismo quando se pensa que desta vez a Amazônia não ficará à “margem da história”, e por alguns meses o Brasil de Norte a Sul, Leste e Oeste direta e indiretamente ouvirá sobre as questões relacionadas a esta região.
Esta é uma oportunidade para relermos sem perplexidades aquela cinematográfica e metafórica descrição feita por Euclides da Cunha sobre um costume festivo nos seringais e que lhe inspirou um dos textos mais instigantes da situação dos seringueiros - JUDAS AHSVERUS. “A malhação do Judas” é uma celebração religiosa realizada no sábado de aleluia. O Judas é representado por um boneco de pano e exposto pendurado num poste ou árvore, como fosse um enforcado. É xingado sistematicamente por quem o vê, apedrejado e espancado a pauladas até ser queimado. Mas aquele boneco visto por Euclides não era outro qualquer, mas a própria figura do seringueiro. Euclides descreve o boneco estropiado boiando à deriva rio abaixo. Destino esse que Chico Mendes e Marina Silva conseguiram reverter, um como outro, encontram-se na terra firme da história.
Numa certa medida “JUDAS AHSVERUS” foi à maldição que marcou também a trajetória de Roger Casement, desde a sua postura de lutar em defesa dos direitos humanos (na África e na Amazônia), mas, sobretudo por ter tido a coragem em afirmar suas origens e lutado pela soberania da Irlanda. E por isso foi ultrajado, acusado de promíscuo, renegado, preso e enforcado e colocado à deriva por muitas décadas até ser resgatado pelos historiadores depois de um século de controvérsias.
O mesmo não se pode afirmar sobre o resgate do cineasta pioneiro Silvino Santos, ele que filmou as imagens da fauna e flora da Amazônia que podemos assistir em seus documentários, muitas daquelas espécies atualmente encontram-se em extinção ou ameaçadas, por exemplo, a sumaumeira (recordam daquela fotografia do laboratório improvisado na selva) é uma delas. Recordem-se daquelas tomadas da pesca de peixes-boi e pirarucus? Elas, por si só revelam a abundância e a generosidade da biodiversidade amazônica. E Manaus? A paisagem aquático-urbana desta cidade com seus igarapés e pontes, hoje se encontram aterrados. O mesmo acontece com a construção da hidrelétrica no rio Madeira que fará submergir as corredeiras e cachoeiras do salto de Santo Antonio, em Rondônia, justamente aonde Silvino, em 1918, filmou numa panorâmica de quase 360º aquele espetacular fenômeno natural.
Tudo isso é fato, não é ficção.
Silvino Santos, apesar disso e ter sido assunto de teses acadêmicas, no Brasil e no exterior, ou de termos realizado, em 1997, a sua cinebiografia - “O Cineasta da Selva”, mesmo assim não foi o suficiente para fazer com que o seu derradeiro relato memorialístico “Romance da Minha Vida”, um manuscrito de 160 páginas escrito no calor da sua redescoberta, em 1969, merecesse uma edição. Nós sabemos, ele encontra-se prestimosamente guardado no Museu Amazônico, mas já se faz tarde, é urgente libertá-lo da maldição Judas Ahsverus.
A História, todos nós haveremos de concordar, é uma deusa caprichosa, escreve certo por caminhos e interpretações labirínticas.
Manaus, 24 de agosto de 2010/ São Paulo, 10 junho de 2011.
NOTAS
(1) O Cineasta da Selva (The Filmmaker of the Amazon). Dir. Aurélio Michiles
35 mm, cor e p/b, 87 min., Brasil, 1997.
O Cineasta da Selva é um filme documentário que conta a vida de um garoto (Silvino Santos, 1886-1970) que sempre sonhou em conhecer a Amazônia e acabou se transformando num mito da selva.
(2) Romance da Minha Vida, Silvino Santos, (manuscritos inéditos, 1969). Museu Amazônico, Manaus-AM.
Bibliografia Consultada
1. A Árvore que Chora: O Romance da Borracha (The Weeping Wood), Vicki Baum. Porto Alegre, Ed. Globo, 1946.
2. À Margem da História, Euclides da Cunha, São Paulo: Cultrix/INC/MEC, 1975..
3. Euclides da Cunha e o Paraíso Perdido, Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
4. Seringal e o Seringueiro, Arthur Cezar Ferreira Reis, 2º Edição. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.
5. A invenção da Amazônia, Neide Gondim, São Paulo: Marco Zero, 1994.
6. Jaque al Barón - La historia del Caucho en la Amazonia (The river that god forgot), Richard Collier. Peru-Lima: Centro Amazónico de Antropologia y Aplycación Práctica, 1981.
7. The Amazon Journal of Roger Casement, Angus Mitchell, London: Anaconda Edition Limited, 1997.
8. The thief at the end of the world – Rubber, Power, and the seeds of the empire (O ladrão do fim do Mundo), Joe Jackson, 2008;
9. A acumulação do capital, Rosa Luxemburgo; São Paulo: Abril Cultural, 1984 (coleção Os Economistas).
10. A história econômica do Brasil, Caio Prado Junior. São Paulo: Brasiliense, 1945.
11. A luta pela Borracha no Brasil- Um estudo de história ecológica, Warren Dean; São Paulo: Nobel, 1989.
12. Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: A Study in Terror and Healing, Michael Taussing. Chicago: University Of Chicago Press; 1987.
13. Fordlândia – Ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva, Greg Grandin. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
14. Cinzas do Norte (Ashes of the Amazon) / Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
15. No Rastro de Silvino Santos, Selda Vale da Costa e Narciso Julio Freire Lobo. Manaus: SCA/Edições Governo do Estado-AM, 1987.