sexta-feira, 11 de julho de 2008

O CINEMA É UM SÓ












REFLEXÕES SOBRE O DOCUMENTAL E O FICCIONAL (*)

Sergio Santeiro santeiro@vm.uff.br


Acho que não se devia falar de cinema documentário. O cinema é um só: associação de sons e imagens em movimento. O cinema sempre foi sonoro: o frêmito da platéia acompanhando as emoções suscitadas pela sucessão de imagens cujo ordenamento significa significados, e acompanhadas ao piano, e muitas vezes com dramatização por trás da tela.

A fundamental contribuição do cinema é o movimento ou a ilusão de movimento. O registro fotográfico acelerado como nas folhas dos bloquinhos de animação gera a impressão de realidade que só pode, é claro, nos remeter à realidade exterior a nossa volta e à realidade interior dentro de cada um de nós. E assim num continuo entre o exterior e o interior, o documental tende a refletir o exterior enquanto o ficcional tende a refletir o interior.

Quanto menor a interferência do autor é mais documental, quanto maior é mais ficcional. Porque o documental tem que dar conta das imagens que recolhe, descobrir-lhes o nexo do sentido e apresentar. Já o ficcional precisa dar conta das imagens que cria e representá-las em função do nexo de sentido que imaginou.

O ficcional é a criação do desejo estético, o documental é sua descoberta no entorno. O ficcional escreve com o olhar, o documental descreve. E tudo é cinema. Podemos sim falar de cinema documentário no sentido do conjunto dos filmes documentais. Mas, precisamos sobretudo falar da singularidade que é cada filme documental ou ficcional. E isto é que é arte. Sacar a singularidade, presente em cada um de nós que somos singularidades na multidão. E é daí que o filme emociona o publico.

Tanto faz numa ou noutra forma, numa e em outra medida, mais, menos. Os filmes de sucesso só o são porque foram mais oferecidos aos públicos, ou mais espertamente. Sucessos de hoje podem não ser nada mês que vem fracassos podem acumular sucessos ao longo de cem ou duzentos anos de presença. É ruim, é nefasto insistir nesses torneios medievais de melhores: de um lado o preferido da coroa e do outro o misterioso cavaleiro negro.

Acho que o cinema tende mais para o esporte coletivo como o futebol, por exemplo. O conjunto é um time que pode ter craques em todas as posições, mas que só dá certo quando a regra é clara: quem pede recebe, quem se desloca tem preferência. E o objetivo é o gol quando todo o time comemora e seus torcedores tambem. Não é nessas arapucas de ego em que nós, só nós, que somos penta, perdemos o jogo em casa disputando embaixadinha na nossa pequena área.

Estamos sofrendo uma inacreditável invasão audiovisual como na Guerra dos Mundos. E vem pela rede, pelas tevês, pelas multisalas enquanto reprimimos uma multidão de imagens nativas que só elas podem-nos revelar a imagem de quem somos. Externamente como no documental e internamente como no ficcional.



(*) Originalmente postado em CINEMABRASIL - Lista debatendo Técnica, Linguagem, Mercado do Cinema Brasileiro, no dia 09 de julho de 2008, às 13:56.

PS. Aurélio Michiles: Alguns filmes que provocaram e repercutiram um outro olhar sobre o fazer audiovisual:


(1) O Homem da Câmera (Chelovek s Kinoapparatom), Rússia, 1929, p&b, mudo, 80 min.
Dir. Dziga Vertov


(2) IRACEMA, Uma transa amazônica, Brasil/Alemanha, 1974, cor, 90 min.
Dir. Jorge Bodansky e Orlando Sena.


(3) História do Vento (Une Historie de Vent) França, 1988, cor, 80 min.
Dir. e Rot. Joris Ivens e Marceline Loridan


(4) Verdades e Mentiras (F For Fake, 1973), França, cor, 86 minutos.
Dir. Orson Welles. Rot. Orson Welles e Oja Palinkas.

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Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.