Logo depois deste massacre ter acontecido, encontrei em Brasília com o líder Davi Kopenawa e, ele pediu que realizássemos um documentário sobre esse trágico episódio acontecido com o seu povo. Levei a idéia ao Beto Ricardo do Instituto Socioambiental e que apoiou de pronto.
O filme-documentário "Davi Contra Golias" teve estréia no MIS-SP (Museu da Imagem e do Som), no "Dia do Índio" - 19 de abril de 1994. E, para a nossa supresa no dia 24 de abril, a Folha SP, publicou um infame artigo "Os bastidores do ianoblefe" assinado por Janer Cristaldo um texto em que ele tentava desqualificar os índios (pasmem!) e, também o massacre. Logo outros profissionais como o Procurador da República Aurélio Virgilio Veiga Rios, a jornalista Memélia Moreira, o articulista Arnaldo Jabor e a antropóloga Alcida Rita Ramos saíram em defesa dos Ianomâmi, e por fim a Folha SP pediu-me que escrevesse um artigo para encerrar a polêmica. O texto de minha autoria que saiu publicado é este, o qual posto neste blog para memorizar a memória deste fato, 20 anos depois.
Domingo, 15/MAIO/1994. Folha de São Paulo
PONTO CRÍTICO
Especial para a Folha
O YOM HASHOÁ IANOMÂMI
AURÉLIO MICHILES
Para início de conversa: o massacre dos ianomâmi de Haximú, não foi um só, foram vários. É só ler o Laudo Pericial da Polícia Federal, conforme inquérito policial número 078/93-DPF-1/RR/19. ago 93-30. set. 93/2 volumes. Os meios de comunicação documentaram como possível e foi o suficiente para se chegar aos fatos – houve o massacre. O resto é apenas uma prática comum de fazer persuadir a opinião pública: tudo que se vê não é aquilo que se vê, é apenas o que EU quero que vocês vejam.
Duvidar da cremação de cadáveres pelo leviano argumento dos ianomâmi não possuírem modernos crematórios ou forno de microondas? É ridículo. É a mesma coisa que duvidar dos primeiros viajantes cruzando oceanos, descobrindo outros continentes antes de existirem as modernas embarcações transatlânticas ou, ainda, da cartografia anterior aos satélites.
É neste jogo de sofismas aonde são manipulados todos os fatos hediondos do nosso cotidiano: Candelária, Vigário Geral, Carandiru, Esquadrão da Morte, Corruptos do Orçamento, Camarilha do Governo Collor, Extermínio de Crianças, etceteras e etceteras...
Que fique claro: falar em assassinatos de índios no Brasil é pleonasmo.
Conta um mito dos índios Hixkaryãna que um cidadão desafiando a luz do sol, afirmou não ser verdade que o sol alimentava todas as coisas de nossa Terra, água, plantas, pedras... e pôs-se a desafiá-lo cara a cara, horas a fio, mergulhando inexoravelmente nas trevas, "e seu rosto empretejou de escuridão". Alguém ainda tentara persuadi-lo, quando um outro alguém aconselha: "Deixe-o, não se preocupe, ele é apenas um tolo". Em outras palavras, este mito quer dizer: "cego é aquele que não quer ver".
Em nosso país, nos tempos da férrea ditadura, muitos cidadãos foram assassinados, torturados e quando os parentes e a sociedade cobravam do governo, recebiam a solene resposta: "Não existe tortura, nem presos políticos no Brasil". Quando o jornalista Vladimir Herzog apareceu morto numa cela de prisão, apesar da foto mostrar ser impossível alguém se suicidar daquele jeito, revelava-se o lado espetacular dos assassinatos sob tortura. Levou anos para que a família de Herzog e a sociedade brasileira tivessem uma resposta honrada diante daquele odioso crime.
O tolo que encara o sol e perde a luz do conhecimento é o mesmo que não consegue entender os povos indígenas. É o caso do sr. Janer Cristaldo, no artigo "Os Bastidores do Ianoblefe" ("Mais", 24/04/94; não nos interessa comentar o outro artigo, "Mais", 8/05/94, onde só reafirma suas bravatas lombrosianas) quando tenta, como aqueles senhores que ainda negam o Holocausto praticado pelos nazistas, câmaras de gás, os campos de concentração, apesar dos filmes, fotos, livros, depoimentos dos sobreviventes...
Massacres na verdade, é apenas o lado espetacular dos fatos. Por exemplo, quando se fala em garimpo apenas ficamos com a imagem do garimpeiro fugidio, ou com aquela visão de Serra Pelada, no Pará, e seus 80 mil garimpeiros misturados à lama catando e juntando ouro com as próprias mãos.
Os garimpeiros são os miseráveis que avançam para fora das fronteiras nacionais em busca do Eldorado, monitorados por interesses que desconhecem, os poderosos grupos de atividades minerais. O fato é que na bacia amazônica hoje, o garimpo está erodindo os solos e bloqueando cursos d'água com lodo. A Organização Mundial da Saúde anuncia que mais de um milhão de pessoas estão hoje, na Amazônia, envenenadas por mercúrio.
O massacre de Haximú é aquela mesma imagem espetacular da Serra Pelada, encobrindo os verdadeiros conflitos. No caso Haximú, importa se foram "19, 40, 73, 89, 120, e finalmente 16 cadáveres chacinados?" (vide frase do sr. Cristaldo) Imaginem se 16 membros de sua família tivessem sofrido todo tipo de sevícias, ou colocados como reféns por bandidos que invadiram a festa de aniversário em sua casa. Estes bandidos não mataram todos os 25 convidados ou membros de sua família, mas mataram e seviciaram apenas 16 membros de sua família. faz diferença? Hitler não matou oito milhões de judeus mas foram apenas seis milhões. Faz diferença?
Esta contabilidade em que muitos gostam de embarcar é evidentemente, uma contabilidade contando juros e lucros para aqueles que estão explorando as riquezas no território ianomâmi. Que tal uma CPI da exploração do ouro na bacia amazônica? Que se esclareça logo de uma vez o que é garimpo e o que é mineração.
É o que importa se o massacre foi no lado do território da Venezuela ou do Brasil, pergunto? Isto seria hipocrisia, pois querem todos acreditar que lá, naquelas lonjuras, vive-se o jogo da terra de ninguém e o que vale é o ouro. E mata-se por ele como foi o massacre dos ianomâmi de Haximú.
E vejam só. O sr. Cristaldo ao querer colocar os índios como inimigos mortais da Nação, cita o caso dos índios Waimiri-Atroari, justamente aqueles que nos anos sessenta, vendo suas terras invadidas por interesses de mineradoras, reagiram à invasão matando e morrendo. A morte do sertanista Gilberto Pinto (1974) e seus companheiros "pelos Waimiri" é um mistério. O sertanista foi morto a tiros e os índios Waimiri-Atroari não possuíam e nem sabiam usar armas de fogo. O enterro de Gilberto Pinto, em Manaus, foi feito por policiais militares, numa urna mortuária lacrada, e os familiares de Gilberto tentaram em vão conseguir ver o corpo ("Waimiri-Atroari – a história que ainda não foi contada", de José Porfírio F. de Carvalho, Edição do Autor, 1982, págs. 85 a/105). Lembro mais: Tudo isso foi naquela época, a do cerceamento das liberdades de expressão e comunicação. O que aconteceu? Lá está instalada a Paranapanema S/A explorando cassiterita na terra dos Waimiri-Atroari. E lembro ainda mais os txucarramãe tiveram uma história parecida, assediada por fazendeiros. Esse grupo caiapó começou a sentir suas terras encurtando sob seus pés, reagiram, mataram e foram mortos, até ganharem um pedaço de terra no parque do Xingu.
E lembro mais: em 1985 outros índios, também caiapós, no sul do Pará, frequentaram as manchetes da imprensa nacional como inimigos mortais dos recém chegados fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Os caiapós reagiram matando. E morrendo.
Hoje, na cidade de Redenção, sul do Pará, os caiapós transformaram-se nos maiores correntistas e aplicadores econômicos da região. Aliás, Paulinho Paiakan é um dos dinâmicos caciques empresários que empregam brancos e índios em seus inúmeros negócios, fazendo surgir uma massa indígena ávida de consumo, deixando o comércio local excitado e a população regional com água na boca.
A história dos ianomâmi não se diferencia das outras acima lembradas. O verdadeiro massacre dos Yanomami vem acontecendo desde a chegada dos garimpos em seu território no início da década de oitenta, quando já morreram 15% de sua população que era de 20 mil pessoas (Brasil/Venezuela).
O garimpeiro é a nesga, é também o lado espetacular de uma tragédia nacional brasileira. Por que não se propõe uma sociedade com os índios, cria-se um fundo, divide-se os lucros, investindo em infra-estrutura (educação e saúde) procurando outras técnicas que não sejam estas que estão erodindo os solos, envenenando os rios e matando as pessoas que deles usufruem para sua vida? Quem sabe, se as mineradoras repassassem as riquezas do território ianomâmi para os índios, em breve surgiria um deles com câmera na mão e uma idéia na cabeça para contar os bastidores desta história. Assim como fez Steven Spielberg em "A Lista de Schindler".
Ainda assim alguns tolos haveriam de continuar encarando o sol, mergulhando suas faces nas trevas da infâmia.
AURÉLIO MICHILES roteirizou e dirigiu "DAVI Contra GOLIAS" (sobre o massacre dos Ianomâmi em Haximú, 1993).
NOTA
Yom Hashoá significa em hebraico "Dia do Holocausto".
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