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COSME: CHEIRO DE CINEMA
José Ribamar Bessa Freire
16/03/2014 - Diário do Amazonas
Grande Otelo: - O que é isso, rapaz?
Ankito: - (farejando o ar)... O cheiro...Você não sente?
Grande Otelo: Que cheiro?
Ankito: Cheiro de cinema!!! Como gosto deste cheiro!
(Diálogo no filme "Pé na Tábua")
Com este aroma, uma mistura de memórias e saudades de infância, o cineasta amazonense Aurélio Michiles abre seu documentário "Tudo por amor ao cinema" sobre outro amazonense, Cosme Alves Neto (1937-1996), o grande curador da filmografia nacional responsável pelarecuperação e conservação de filmes. O longa-metragem de Michiles (SP, 97 min. 2014) foi escolhido para abrir no Rio a 19ª edição do festival "É Tudo verdade", no dia 4 de abril, no Espaço Itaú Cinema em Botafogo. Lá, ele pinta o retrato de quem respirava cinema.
O cheiro de cinema vai marcar também, nesta quarta-feira (19/03), outro evento que ocorrerá no Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro(UNIRIO), na Urca, com a defesa da tese "Em territórios do patrimônio cinematográfico: cinema, memória e patrimonialização" da doutoranda Renata Queiroz Soares. Ela aborda, num texto acadêmico, o mesmo tema que Michilles registra em imagens: o conceito de patrimônio cinematográfico e sua importância para a memória, a história e a identidade nacional.
O guardião do cinema
Não vi ainda o documentário de Michiles que, também embriagado pelo cheiro de cinema, já nos deu “Que viva Glauber!” (1991) e “Cineasta da selva” (1997). No entanto, troquei figurinhas com ele e li "O guardião do cinema" (O Globo 11/03) uma resenha feita por André Miranda, que reproduz depoimentos sobre Cosme, lembrado como uma figura mítica, na fala de Eduardo Coutinho, ou como o guardião do cinema brasileiro, segundo Cacá Diegues, ou ainda vinculado ao cinema do mundo inteiro na voz de Nelson Pereira dos Santos.
Michiles entrevistou 67 pessoas no Rio, Manaus, São Paulo, Mossoró, Havana e Lisboa, cujas falas são alternadas com cenas de 70 filmes. Alguns entrevistados como Ana Callado, Arnaldo Carrilho e Alberto Shatovsky destacaram a militância política de Cosme, que foi preso duas vezes pela ditadura, a primeira logo depois do golpe militar, em 1964, quando estava de casamento marcado. Ficou preso seis meses e presenciou a queima do negativo do "Encouraçado Potemkin" (1915) sobre a revolução russa, que ele exibiu clandestinamente inúmeras vezes.
No momento em que o país se organiza para um ajuste de contas com o passado, rememorando os 50 anos do golpe militar, é importante lembrar a atuação política de Cosme, primeiro como militante da Juventude Universitária Católica (JUC) e depois da Ação Popular (AP), na luta contra a ditadura, o que marcou sua trajetória impregnada de religiosidade, segundo Carrilho, para quem "ser cristão e marxista dá um problema miserável porque ambos são messiânicos”.
A Cinemateca do Museu de Arte Moderna - diz Shatovsky - foi "um polo de resistência cultural" liderada por Cosme, que como seu curador desde 1965 buscava guardar todos os filmes possíveis, alguns com nomes trocados. Eduardo Coutinho, falecido recentemente, lembra que as primeiras sequências de "Cabra marcado para morrer", rodada nos anos 1960, só conseguiram ser retomadas e finalizadas em 1984 porque ficaram escondidas por Cosme na Cinemateca, guardadas com o título 'Rosa do Campo' para despistar a repressão.
Patrimônio cinematográfico
E aqui se cruzam o filme de Michiles com a tese de Renata Soares que, além de fazer uma varredura crítica na bibliografia sobre o tema, entrevistou nove pesquisadores da área de cinema. Um deles, Hernani Heffner, conservador-chefe da Cinemateca do MAM, contou para ela que "os dois nomes mais importantes para a memória cinematográfica brasileira foram o Paulo Emílio Sales Gomes e o Cosme Alves Netto, curador durante 40 anos, consultor de inúmeros festivais, um 'empreendedor da memória', que dedicou sua vida ao cinema".
Afinal, o que vem a ser esse patrimônio cinematográfico que Cosme Alves Netto defendeu com tanta paixão? A tese problematiza o conceito a partir de algumas perguntas: quem determina o que é patrimônio cinematográfico? Quais os critérios para decidir o que preservar e o que descartar? Que discursos o instituem? Qual seu impacto na construção da identidade do país? Por que é preciso salvar a produção cinematográfica? Qual a relação entre cinema e memória.
Já que custa muito caro a preservação de filmes, física e quimicamente frágeis e vulneráveis à ação do tempo, a questão é saber se vale a pena fazê-lo? A tese descreve o movimento em defesa desse patrimônio dentro e fora do Brasil e analisa as ações da UNESCO que aprovou, em 1980, a Recomendação para a Salvaguarda e Proteção de Imagens em Movimento, ou seja, aquilo que Cosme vinha fazendo desde os anos 60.
- O cinema surgiu como atividade mercantil de feição industrial, cuja prática é usar e jogar fora. Não foi diferente com o cinema. Por que preservar obras que já não rendem mais lucro? - se pergunta ironicamente Hernani Heffner. Ouvido por Renata, o professor da UFF João Luiz Vieira calcula que entre 70 a 90% da produção mundial do cinema mudo está desaparecida.
Outro entrevistado, Carlos Calil conta que viveu coisas horríveis com filmes apodrecendo dentro de latas, que quando você abre, não tem mais o que fazer, "é como o cirurgião que abre o paciente e o câncer já tomou completamente tudo, você fecha a barriga e espera o cara morrer, a situação é muito parecida".
Contra-história
Na discussão sobre o que é patrimônio cinematográfico, Carlos Calil exemplifica com filmes etnográficos: "Há filmes que o Levi-Strauss fez no Brasil que não são muito conhecidos e nem são tecnicamente bons, ele era um grande pensador, não um cineasta. Mas esses registros da aldeia Kadiweu pertencem ao patrimônio cinematográfico brasileiro. Patrimônio não é apenas obra estética, acabada, não é só artístico, tem que ser simbólico". O filme de Tomas Reis "Ao Redor do Brasil" que documenta Rondon numa aldeia também é importante para entender o Brasil.
A tese acompanha as mudanças no conceito de patrimônio histórico, desde quando Boleslaw Matuszewski, em 1898, três anos depois da invenção do cinematógrafo, escreveu o artigo "Uma nova fonte histórica", onde defende que a fotografia em movimento seria uma forma de se estudar e conhecer o passado. A autora considera a relação entre patrimônio cinematográfico e a memória social em bases singulares, citando o historiador Marc Ferro: "a câmera desvenda o segredo, apresenta o avesso de uma sociedade, seus lapsos. Ela atinge suas estruturas".
- Um filme pode atualizar um acontecimento passado e jogar luz sobre personagens e fatos, possibilitando um novo olhar sobre eles, pode funcionar como uma chave de ativação da memória - escreve Renata, recorrendo a Jeanne Marie Gagnebin para quem "o filme ajuda assim na constituição de uma contra-história não oficial, liberada parcialmente desses arquivos escritos que muito amiúde nada contém, além da memória conservada por nossas instituições".
Faz sentido. Cosme Alves Netto certamente gostaria de ler isto, porque sua vida foi a luta, com riscos, para preservar um acervo que destoa da história oficial. Esse é o legado que ele nos deixou. De qualquer forma, apoiada em seus entrevistados, a doutoranda mostra que se trata de um conceito complexo, que não pode ser usado de forma inconsequente, sem um questionamento teórico.
P.S.1 - Renata Queiroz Soares: Em territórios de patrimônio cinematográfico: cinema, memória e patrimonialização. Tese de doutorado.PPGMS - UNIRIO. Banca: Regina Abreu (orientadora), Amir Geiger, Analice Martins, Manoel Ferreira Lima, Maria Cecilia Londres e Vera Dodebei.
P.S. 2 - Ver texto REVIVENDO COSME (2006) http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=163
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