Ponto Gê
terça-feira, 18 de março de 2014
COSME
Getúlio Alho
Uma certa noite de 1964, em Manaus, por volta das oito horas, ao chegar ao Café do Pina – local de encontro diário para a conversa noturna – notei um certo alvoroço entre três ou quatro pessoas que ali estavam. Tomei o tradicional café e me aproximei do grupo que fazia passar de mão em mão um jornal do Rio. O jornal talvez fosse o Correio da Manhã, que era um dos únicos jornais que ainda se mantinha independente. A notícia era sobre as condições precárias de presos políticos no Rio e trazia a foto de uma folha de caderno escrita a mão. Ao ver a foto não tive dúvida: era a letra do Cosme! E aquela denúncia confirmava a notícia que correu dias antes de que ele havia sido preso no Rio.
Cosme Alves Netto era um moço discreto, filho de um industrial e político amazonense, de uma cultura exemplar voltada sobretudo para o cinema. Pouco antes de se mudar para o Rio, acompanhou alguns trabalhos do Clube da Madrugada, como uma exposição de pintura de vários artistas locais e que foi feita no hall de entrada do Teatro Amazonas. Cosme mostrava grande habilidade com o recém lançado pincel atômico fazendo etiquetas com o nome das obras expostas e dos artistas, com uma impecável e perfeita letra de forma. E era essa letra que aparecia na foto do jornal e que nos avisava de sua situação de preso político.
Cosme Alves Netto, então curador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, desenvolvia um trabalho de divulgação de filmes de arte, que atraía um grande número de aficionadas em cinema. Em 1965 tive a oportunidade de ver um de seus trabalhos na Cinemateca do MAM, o ciclo de Cinema Polonês. Pouco depois, Cosme foi um dos idealizadores de uma série de sessões de filmes realizadas num cinema do Catete, cujos frequentadores ficaram sendo conhecidos como geração Paissandu. Esse gosto pelos filmes de arte, ou de filmes que não passavam no circuito comercial, notadamente os vindos do leste europeu, principalmente tchecos, poloneses ou russos, despertaram a desconfiança da linha dura militar. Daí sua prisão.
Essas lembranças vêm a propósito da exibição do filme "Tudo por amor ao Cinema", documentário biográfico de Cosme, realizado por outro amazonense igualmente vidrado em cinema: Aurélio Michiles, autor dos documentários "Que viva Glauber" e "O cineasta da selva", este sobre Silvino Santos, amazonense como Cosme e Aurélio, pioneiro do cinema brasileiro.
O leitor pode ver o trailer de "Tudo por amor ao cinema" em http://www.youtube.com/watch?v=P5U24Gsiv.
No filme a gente encontra este lamento de Cosme, referindo-se à Cinemateca do MAM: "Todos aqueles filmes que eu via quando era garoto, estão aqui no nosso acervo. E sabe o que acontece? Eu não tenho tempo de ver nenhum..."
O filme de Michiles faz parte do festival Tudo é Verdade, edição de 2014.
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