A CONTRA CULTURA EM PERSPECTIVA - Luiz Carlos Maciel (1938-2017)
A história da contracultura é contada por eventos, grandes e pequenos, e pelos indivíduos envolvidos nele. Uma lista do que nela não poderia faltar, é alentada. Grandes concertos de rock, em locais abertos, diante de multidões de jovens, principalmente o realizado em Woodstock, assistido por 500 mil pessoas e que se tornou um símbolo em 1969. A carreira de conjuntos famosos como os Beatles, os Rolling Stones, Pink Floyd, Led Zeppelin e tantos outros. Os discos marcantes que gravaram ainda na era do LP. Os poetas de San Francisco, editados pela City Lights. A mitologia que colocou uma áurea libertária nas drogas psicodélicas, especialmente a maconha, o LSD, os cogumelos mágicos, o cactus peyote. O abandono do pensamento racional, matemático, em favor do pensamento mágico, ocultistas como Aleister Crowley, divulgadores do ácido lisérgico, como Timothy Leary. As rebeliões estudantis e a campanha contra a guerra do Vietnã. O prestígio de doutrinas vindas do Oriente, como as várias crenças da Índia, o prestígio de gurus como Osho, e a influência do Budismo, do Taoísmo, do Zen Budismo. O advento da anti-psiquiatria de Ronnie Laing e David Cooper, resgatando a loucura de sua maldição. Livros reveladores do Oriente: o I-Ching que propicia a descoberta da sincronicidade, o que – como veremos daqui a pouco - iria redundar numa nova maneira de conceber o próprio Tempo. O Livro Tibetano dos Mortos que, adaptado por Leary, vira um guia para viagens de ácido. O trabalho de divulgadores da visão oriental, como Alan Watts. A revolução nas artes em geral. O teatro off-Broadway em Nova York, lar do Living Theatre, de Judith Malina e Julien Beck, na vanguarda da contracultura. O título de um de seus espetáculos, Paradise Now, indica que a contracultura vem do futuro porque faz exigências prementes ao presente. O musical Hair, na Broadway. O cinema de vanguarda. A imprensa alternativa materializando uma imagem do mundo diferente da divulgada pela media capitalista. As anti-Universidades que libertam o conhecimento humano dos limites da caretice acadêmica para sua abertura a novos e surpreendentes horizontes. O mundo da contracultura parece inesgotável. Se continuar a fazer este inventário, acho que não vou terminar nunca...No Brasil, na fase mais feroz da ditadura militar, quando nossos jovens experimentavam o apelo para a ação armada, peço licença para apontar no sentido de uma alternativa: as primeiras informações sobre nascente contracultura que foram publicadas entre nós foram registradas pelas páginas do Underground do Pasquim, sob minha responsabilidade. Minha participação no surgimento da contracultura brasileira se confundiu com minha atividade profissional como jornalista. Fui um dos responsáveis pelo aparecimento de uma imprensa alternativa entre nós, em publicações como a primeira Rolling Stone e a Flor do Mal. Se a guerra do Vietnã estimulou o surgimento da contracultura americana, aqui uma brutalidade semelhante, a ditadura militar, cumpriu o mesmo papel. Ela motivou artistas brasileiros importantes como Caetano Veloso e Gilberto Gil com seu Tropicalismo, Raul Seixas com sua Sociedade Alternativa e muitos outros. É preciso lembrar os poetas da Nuvem Cigana, a geração do mimeógrafo, o Circo Voador e seus artistas, Jorge Mautner, Rogério Duarte, José Agripino de Paula, Torquato Neto, Tavinho Paes, poeta e ativista cultural que continua a todo vapor até hoje, e tantos outros. Eventos como as noites do Curtisom, no Rio, o Festival de Guarapari, a multiplicação das comunidades rurais formadas por jovens que abandonaram as grandes cidades, o número crescente de espectadores para shows com a música da nova geração, a multiplicação da imprensa alternativa, e o crescente consumo de drogas alucinógenas, ou sagradas, são fenômenos que merecem consideração. A contracultura se alastrava por toda parte, até por aqui. Mas tudo começou com o movimento pacifista que gostava de mostrar Lord Bertrand Russell lutando pela paz na Trafagal Square, em Londres. O símbolo do movimento era exatamente o mesmo que os hippies haveriam depois de popularizar em todo o mundo, traduzindo-o no slogan fundamental Make Love Not War. Nos USA, o movimento foi abraçado por jovens universitários que, a começar por Berkeley, se espalhou ràpidamente por todos campus do país, graças, entre outros fatores, ao documentário Operation Abolition que as autoridades divulgaram por toda parte, mostrando a violenta repressão policial que se abateu sobre os meninos da California que protestavam contra a guerra no Vietnã, com o objetivo de intimidar os meninos do resto dos USA. O resultado foi o inverso do pretendido. Os jovens americanos de todos os lugares ficaram revoltados com a estupidez policial e aderiram ao movimento pacifista. Atenderam à recomendação de Timothy Leary para turn on, tune in e drop out. Cairam fora. Queimaram publicamente seus certificados para o serviço militar e preferiram tornar-se marginais da sociedade estabelecida. Vestiram roupas diferentes e vistosas, deixaram os cabelos crescer, acenderam seus cigarrinhos maconha, tomaram seus ácidos lisérgicos e viraram a mesa. Foram os primeiros hippies. Sem embasamentos teóricos, a partir da intuição e da ação pura, criaram um movimento surpreendente no melhor estilo do grupo-em-fusão, definido por Sartre como a única rebelião eficiente contra a opressão do “inferno do Prático Inerte”, isto é, o Sistema até hoje infelizmente vigente e seus mecanismos de manipulação e controle – e que Philip K. Dick chama de Prisão de Ferro Negro. Sim, o Sistema, o adversário, já havia sido identificado e devidamente caracterizado. Desde Marx , pelo conceito de alienação, a Georg Lukacs, pelo de reificação, até Sartre, pelo de serialização, ou mesmo de Heidegger, pelo de maquinação, ou de Philip K. Dick e sua visão da Prisão de Ferro Negro, sabíamos quem era e como agia o adversário. Mas ele não esperava tomar um susto tão grande quanto, de repente, viu-se diante de uma contestação que não se definia pelo confronto direto, como as revoluções anteriores, mas por uma manobra indireta, a da alternativa em todas as dimensões de nosso ser-no-mundo, como diria Heidegger. Foram os dias áureos do Flower Power – ou da Sociedade Alternativa, como a preferia chamar o brasileiro Raul Seixas. O gesto da hippie que enfia delicadamente uma flor na boca de um fuzil empunhado por um soldado a serviço da repressão, é uma síntese visual que certamente vale por mil palavras.
- Trecho do ensaio inédito Memórias do Futuro
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