quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

ROUBEI POR AMOR AO CINEMA

* Truffaut e Godard


Desde a juventude Godard e Truffaut eram amigos, tinham um único amor a compartilhar: o cinema.


Conheceram-se em 1949, provavelmente, nas sessões dos clubes de cinema freqüentados por eles, junto a André Bazin, Jacques Rivette e outros.


Como críticos de cinema no Cahiers du Cinema, eles integrariam o grupo que formou o movimento cinematográfico denominado "Nouvelle Vague".


É deles o roteiro de “Acossado” (A Bout de Souffle,1960) e que foi dirigido por Jean-Luc Godard criando uma reviravolta na maneira de contar uma história cinematográficamente, pondo de cabeça pra baixo a nouvelle-vague.


Antes, em 1959, Truffaut havia atingido o sucesso de público e crítica com o seu primeiro filme “Os Incompreendidos” (Les 400 coups, 1959), é a história de um menino desprezado e odiado pela mãe e ignorado pelo padrasto. Um filme sobre desprezo, amor, rejeição, afetividade.


Outro dia li uma declaração de Jean-Luc Godard: “Roubei por amor ao cinema”:


“Cheguei mesmo a roubar dinheiro à minha família, para o dar ao (Jacques) Rivette, para o seu primeiro filme. Roubei para ver filmes e para fazer filmes” (“Die Zeit” - nov 2007).


Imediatamente veio a minha memória o filme “A NOITE AMERICANA” (La nuit américaine,1973) de Françoise Truffaut, sobretudo aquela sequencia em que o diretor (interpretado por Truffaut) sonha (em p/b)... menino caminhando na noite pela cidade, encontra um cinema e rouba um pôster de “CIDADÃO KANE” (Citizen kane,1941) de Orson Welles.


O Cinema é a fita que amarra esses personagens notáveis do cinema mundial, porem separados por seus cordões umbilicais, quer dizer, impolutos egos. Na verdade experiências pessoais e familiares o faziam indivíduos distintos. Godard sempre mais racional e reservado, sonegava intimidades sobre sua vida. Truffaut, mas extrovertido, deseja comunicar-se alem das suas origens traumáticas, as periferias de Paris. Truffaut cresceu sob a atmosfera desta carência afetiva.

Apaixona-se pelo Cinema e toma a iniciativa de criar uma sala de exibição de filmes, após diversos fracassos entre a receita e as despesas, endividado e sem poder pagá-las, ele acaba denunciado aos pais pelos credores: 7.850 francos à Guillard. E no meio destas incompreensões, ele é colocado à disposição das autoridades que o internam num reformatório.

O jovem Truffaut é preso por que amava o cinema.


Nos anos 60, quando filmava “Beijos Roubados” (Baisers Volés, 1968), o qual dedica-o “à Cinemateca de Henri Langlois”, Truffaut engaja-se em defesa do curador da Cinemateca de Paris e que havia sido demitido pelo Ministro da Cultura André Malraux, ironicamente foi durante este episódio que a dupla Godard e Truffaut desentendem-se. Mas a separação desta amizade política-cultural tornou-se pública, em 1973.


MAIO 1973

Truffaut encontrava-se no Festival de Cannes para o lançamento do filme “A NOITE AMERICANA” (La nuit américaine,1973), cuja apresentação aconteceu fora da mostra competitiva, após a sessão obteve uma consagração imediata, todos elogiavam o último filme de François Truffaut. Todos, menos um, justamente o seu melhor, quer dizer “ex” - amigo, Jean-Luc Godard, este após assistir ao filme escreve-lhe uma carta explosiva:

"Provavelmente ninguém irá chamá-lo de mentiroso, portanto faço-o eu. Não é uma injúria, como seria chamar alguém de fascista, mas uma crítica, e é da falta de crítica em que nos deixam filmes como esses."


Truffaut consagra-se mundialmente ao fazer “A NOITE AMERICANA” (La nuit américaine,1973), "um filme sobre os filmes"; no início dos anos 60 Godard já havia feito um filme assim, “O DESPREZO” (Le mépris,1963), mas aquele segue na contra-mão da narrativa experimental de Godard. Não que isso venha fazer uma diferença de opostos, ao contrário, assistindo a esses filmes hoje, podemos dizer que eles fazem parte de um mesmo DVD, parte I e II.

O filme “A NOITE AMERICANA” tem seus méritos e qualidades, ele cria uma ponte de cumplicidade com o grande publico, aqueles que amam o cinema como um espetáculo de astros e estrelas, tal como Truffaut, Godard ou qualquer pessoa.


Em “O DESPREZO” Godard entre o enredo sofisticado em que mistura mitologia grega e a industria de cinema, ele nos brinda sem sutilezas e em primeiríssimo plano a nudez da mulher mais desejada do mundo naqueles anos 60, a atriz Brigite Bardot. Enquanto em “A NOITE AMERICANA” (La nuit américaine,1973), temos a atriz Jacqueline Bisset na sua plenitude de beleza, sem cenas escandalosas, mesmo assim a opção de Truffaut é a sua recorrente preocupação com a poesia, memória e o amor absoluto pelo cinema. Neste mesmo filme há uma cena onde o personagem “diretor Ferrand” (interpretado pelo próprio Truffaut) abre um pacote de livros, todos se referem aos grandes cineastas e num gesto continuo joga-os na mesa: Jean-Luc Godard , Hitchcock, Rossellini, Bunuel, Ingmar Bergman, Lubitsch, Bressan, Howard Hawks, Carl Theodor Dreyer...

Da minha parte posso revelar que quando adolescente, em Manaus, "roubava" da loja de comércio do meu pai, barras de sabão, latas de sardinhas, chocolates, garrafas de cachaça e entregava-os nas mãos do Jurandir (Cine Odeon) para poder assistir filmes impróprios à menores de 14 ou 18 anos. Era uma farra.


Roubar por amor ao cinema todos que o amam assim o fizeram. É um filme.



Bibliografia: de BAECQUE, Antoine; TOUBIANA, Serge. François Truffaut: uma biografia. Trad. Clóvis Marques - Rio de Janeiro: Record, 1998.







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"Livre-pensar é só pensar" Millor Fernandes

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Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.