segunda-feira, 2 de março de 2009

SANTIAGO ALVAREZ E O SÉCULO 21









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Orlando Senna (*)


O acontecimento mais importante da linguagem audiovisual, neste início
do século 21, é a evolução artística do documentário. Um fenômeno alimentado por ousadia estética e transgressões, superação de dogmas, superposição e diluição de gêneros acontecendo neste momento de câmbios profundos na atividade, de natureza tecnológica e industrial. Estão circulando na internet, nos DVDs, na televisão, nos cinemas, nos iPhones uma quantidade enorme de documentários, muitos deles de concepção clássica e muitos delesde concepção inovadora, revolucionária, extrapolando os limites de registro e edição que definiam o território documental no século passado. São obras audiovisuais que mesclam o registro da realidade com cenas ficcionais, animação, videoarte, clipe musical, chroma key, efeitos especiais. Desdobram-se por vários tipos, vários comportamentos de realização: documentário de arquivo, documentário de encenação (na linha de Flaherty), documentário espontâneo, docudrama, docfic e outros, além dos produtos híbridos, misturando distintos comportamentos. Ainda são classificados como ³documentários² mas provavelmente serão rebatizados em algum momento, há teóricos e documentaristas que preferem classificá-los como ensaios, como ³cine-ensaios². Essa explosão da linguagem documental é o corolário, o resultado da posta em prática do entendimento alcançado em meados do século passado de que documentário não é a reprodução da realidade, inclusive porque um registro isento da realidade é impossível, mas sim a expressão da verdade de quem faz o documentário. O que importa, o que interessa, é a qualidade da verdade de cada documentarista, a qualidade humanista de seu ponto de vista, de sua apreensão particular e de sua opinião sobre a vida, a sociedade, a humanidade, a civilização, o planeta. Essa nova linguagem começou a ser forjada por artistas maiores do cinema desde os anos 1920, antes do entendimento generalizado de que documentário é visão particular, quando apenas esses precursores pensavam assim <> Vigo (³documentário é um discurso ilustrado²), o russo Dziga Vertov (³cinema olho, cinema verdade²), o holandês Joris Ivens (que considerava a poesia como componente essencial do documentário), os americanos Robert Flaherty (que transformava personagens em atores nos anos 1930) e Orson Welles (contrapondo realidades e imitações, verdades e mentiras em F for Fake, de 1974).

Nessa linhagem de artistas maiores, ou seja, de artistas que inventam linguagem, que descobrem novos caminhos, que alimentam a evolução estética e a evolução da comunicação humana, tem lugar de honra o cubano Santiago Alvarez e seu cinema transgressor, radical, panfletário. Foi o último dos grandes mestres documentaristas do século 20, produzindo até o último dia de sua vida, em 1998, ano em que realizou dois documentários e completou sua impressionante filmografia de mais de cem documentários e seiscentos Noticieros. O último dos grandes e também o mais instigante, o que mais impactou os jovens cineastas da segunda metade do século passado e o que deixou mais influências na revolução estética do documentário que está acontecendo neste momente. Santiago inventou o clipe, utilizou cenas ficcionais distorcidas, fez reconstituição de fatos com atores, utilizou dramática e visualmente as palavras, explodiu e implodiu a imagem com um grafismo inédito no cinema e incendiou a reflexão e a percepção teóricas ao inventar e defender o conceito Informaturgia, a dramaturgia da informação, a organização artística de fatos, imagens e opiniões.

Ele dizia e demonstrava na prática que não lhe interessava registrar e sim ³participar da realidade². Sobre o ponto de vista individual, a verdade de cada um na tela, era muito claro: "yo informo de acontecimientos a partir de ideas que tengo sobre esos acontecimientos". E certeiro, ao se referir ao futuro: ³a impaciência criadora do artista produzirá a arte dessa época². Essas declarações estão em entrevistas à revista Cine Cubano nos anos 1960 e no livro El Ojo de la Revolución-El Cine Urgente de Santiago Alvarez, de Amir Labaki, 1994. Não está registrado (a não ser que ainda exista uma entrevista que deu à Televisión Cubana nos anos 1980), mas muita gente ouviu de sua própria boca como se definia como documentarista, como artista: ³soy politikón y erotikón². Pólis e Eros: a interação com a sociedade, com a civilização, com a história e o progresso fundida ao amor consciente, ao mito de Eros/Psique, carne e espírito, coração e consciência, real e imaginário, dualidade motora da Arte e dos artistas.

Pois, o que temos agora na internet e nas outras mídias é uma colheita da semeadura de Santiago, da sua teoria e prática da Informaturgia, do casamento da objetividade com a subjetividade, das propostas de linguagem que estão em Now, LBJ, Hanoi Martes 13, La importancia universal del hueco, La soledad de los dioses. Essa nova onda de documentários criativos (assim também estão sendo chamados) e/ou ensaios audiovisuais é a mais importante arte contemporânea. É a única manifestação artística vestida com os parâmetros do século 21, por superar e digerir a dualidade audiovisual do século 20 (real/imaginário, documentário/ficção) e por estar na vanguarda da utilização das novas tecnologias da comunicação. É a manifestação que abre o caminho para uma nova etapa do Cinema, para uma arte audiovisual capaz de filosofar e que já está sendo chamada de Oitava Arte. Atrás desse cenário o que vejo é Santiago em seu campo de luzes, sorrindo e semeando.


(*) Catálogo do Festival Internacional de Documentales Santiago Alvarez In
Memoriam, 10ª edição ­ Santiago de Cuba, 8 a 13/3/2009.

(**) santiago alvarez e aurelio michiles/ a. michiles, lázara gonsález


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Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.