segunda-feira, 22 de outubro de 2007

SANTIAGO F FOR FAKE


"documentário é diálogo"
Joris Ives


"Santiago", de João Moreira Salles (1). Eis um curioso filme documentário, ele nos empurra para questões profundas da vida tendo como interlocutor ou mestre de cerimônias uma personalidade singular. Neste sentido, a questão tão comentada, aquela que hoje os documentários não traz respostas e sim perguntas, indagações... aqui e neste caso, ele assume a ambiguidade com extrema radicalidade narrativa.

Creio que os docs sempre tiveram esse papel, provocador: nem perguntas e nem respostas. Mesmo quando estão a serviço de um objetivo político e ideológico.

Nos anos sessenta tivemos, aqui no Brasil, os documentários que ficaram conhecidos como “Caravana Farkas” (2), esses filmes tornou publico a realidade do Brasil profundo, desconhecido daquela época - o sertão nordestino. Cito também um outro caso, o filme "Um Homem com uma Câmera" (3) aí, por exemplo, o diretor a serviço da revolução soviética, faz enquadramentos inusitados (sobretudo pra época) e nos lança pedagogicamente numa viagem a querer repensar os padrões e ao mesmo tempo maravilhar-se com as novas possibilidades...O próprio título do filme nos faz pensar assim, o realizador empunha o seu instrumento de trabalho. A montagem vertiginosa dialoga com a narrativa não-linear.

O filme-documentário "Santiago", de João Moreira Salles tem um "quê" disto, ao desnudar os bastidores da produção, ele nos revela a intimidade das suas memórias sentimentais. Como estivesse nos empurrando numa jangada para o meio do oceano-memória. Numa espécie de tour através da ambientação arquitetônica, doméstica , familiar e sentimental que formam seu imaginário. E aqui le nos surpreende sob a arguta memória de um antigo empregado doméstico da sua família, o mordomo Santiago.

E aí ele desconstroi o documentário (autor e personagem). Num sentimento secreto querendo apropriar-se dele (João) e do personagem (Santiago). Os dois num só. Neste sentido não podemos esquecer a importância da montagem "escoreliana", tampouco da trilha, esta como personagem coadjuvante reflete-se nas idiossincrasias do
protagonista.

Diante do homem, o mordomo e o seu legado secreto, ficamos assistindo aquele embate entre o "Joãozinho e Santiago". O patrão e o empregado.
A cena do despertar do João, indo a sala, como encantado deparando-se com um pianista-mordomo vestido de fraque... e recebendo uma reposta pedagógica; entre tantas que deve ter tido deste mestre das ilusões. Não podemos esquecer que a cena das mãos, aliás filmada por sugestão do personagem, talvez seja uma das mais belas sequencias do filme. É aqui que nos cabe perguntar, quem é o “patrão” e o “empregado”?

A voz em falsete do verdadeiro João se contrapõe e impõem-se com a voz de barítono do falso João, mesmo assim, verdadeiro, porque é a voz do irmão (Fernando Moreira Salles), porquê tambem testemunha e cúmplice ocular desta memória sentimental F for Fake (4).

A vida neste documentário segue como tantas outras, um curso que tem esplendor e decadência, mas não aquela decadência financeira, e sim a própria vida se esvaindo, sem prantos, mas com a perplexidade bergmaniana. Enquanto que a fotografia em preto e branco, de Walter Carvalho, nos conduz magistralmente a esse templo-memória: “a casa dos Moreira Salles” e o “apartamento de Santiago”. Os planos quase que congelados de determinados ambientes da residência dos “Moreira Salles”, como estivesse guardada num álbum de fotografias, mesmo assim, não nos iludamos, não existe aí qualquer intenção nostálgica. Surge como uma centelha, um estalo, sempre para marcar um momento de auto- referencias.

Quando assisti Santiago, no cinema, junto com tantos outros espectadores, durante a sessão a sala permaneceu em silêncio, como num ritual entre iniciados, obsequiosamente ninguém deu um pio, ninguém riu ou cochichou comentários.

Santiago, de João Moreira Salles, é um excelente programa. Mesmo quando o diretor afirma explicitamente a sua influencia (neste documentário) ao filme “Viagem à Tóquio” do diretor japonês Yasujiro Ozu (1902-1963), num instante que confessa ter assistido este filme no desejo em utilizá-lo como linguagem conceitual neste documentário e para exemplificar escolheu uma sequencia do filme de Ozu, quando se estabelece o seguinte diálogo:

"- A vida não é uma decepção?"

"- Sim, ela é".


O diretor João Moreira Salles, aqui estaria se referindo ao seu personagem, o mordomo Santiago, ou a si mesmo? Nesta ambígua cena em questão, tenhamos a clareza em considerar que ele vira a página da história dos documentários brasileiros, transpassa as fronteiras, consequentemente acreditamos que o filme-documentário “Santiago” encontra-se muito mais para os efeitos ardilosos de um “F for Fake” do quê para o filme de Ozu.

Torna-se interessante notar que, a montagem funciona como um instrumento infalível, cuja manipulação revela um diretor lidando a encenação no set de filmagem como um ilusionista fotográfico. Tudo porque como a própria armadilha que nos arma a nossa memória, quando tentamos contar um fato e a ele acrescentamos uma nova interpretação, sem querer descaracterizá-lo, segue a tradição daquela máxima popular: “quem conta um conto, aumenta um ponto.”
Verdade ou Mentira: João Moreira Salles desconhecia Santiago como este conhecia o Joãozinho? Aí está o enigma que levou 15 anos para ser digerido, o tempo entre as filmagens e esta versão definitiva.

Nestes tempos de celebridades e abelhudamente possessivo da vida alheia, o filme-documentário “Santiago” caiu nas graças do público, afinal ele, como apenas nove copias já foi assistido por mais de 25 mil espectadores. Nada mal para um filme documentário sobre um personagem desconhecido do grande publico.

Aurélio Michiles, 29.8.2007.

Notas:
1 Santiago, dir. João Moreira Salles, Brasil, 2007. 79 min.
2. “Caravana Farkas” é a denominação dada a uma série de filmes documentários produzidos no Nordeste entre 1968 e 1970 por um grupo de cineastas paulistas, liderados pelo fotografo, diretor, empresário e produtor Thomaz Farkas.
3. Um homem com uma câmera (Chelovek s Kinoapparatom), dir. Dziga Vertov, Rússia, 1929, 65 min.
4. Verdades e Mentiras (F for Fake), dir. Orson Welles, EUA. 1973, 86 min.

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Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.