segunda-feira, 22 de outubro de 2007

TROPA DE ELITE E O RECRUTA ZERO


Na sexta-feira, dia 5 de outubro, fui assistir ao filme "Tropa de Elite", de José Padilha; antes mesmo do seu lançamento já havia se transformado num fenômeno de massas. Aqui não pretendo fazer-lhe uma análise crítica, mas sinto-me motivado a uma espécie de relato sobre o seu impacto no cenário da produção cinematográfica brasileira e o que isto significa como metáfora sobre a nossa contemporaneidade e mais uma quebra de paradigmas contra aquela visão (com razão) da policia como inimiga da sociedade.

Como já afirmei, fiz o ritual do bom cidadão, paguei o ingresso e junto com outras tantas pessoas sentei-me na poltrona para finalmente conferir mais um filme brasileiro, aquele que nos últimos tempos rompeu a fronteira do privado e do coletivo, do legal e do ilegal, da "elite" (op's!) e do popular. Explico-me na semana passada a Alessandra, a moça que trabalha em minha casa, comentou que havia comprado por "cinco reais" uma cópia no calçadão, mas ela sequer qualificou-o como "pirata", apenas disse que havia comprado, como quem comenta que fez compras na "fnac", por exemplo. E, ela como sabe do meu interesse sobre cinema ofereceu-me emprestada.

Não deu tempo, no dia seguinte, sexta-feira, não consegui segurar a curiosidade.E aí está o filme, correndo de boca em boca, massageando a visibilidade da nossa produção cinematográfica, desde qualidade da produção até na distribuição. Ora, distribuição em nosso país é um tabu, como todos sabem por aqui pouco se divide daí as consequencias que causou a existência desta história "Tropa de Elite". A distribuição de riqueza, seja ela de origem econômica, política, social ou cultural tem sido feita na marra. A "elite" tem dado o seu "jeitinho" corrompendo e aliando-se com as forças ilegais. Determinados políticos fizeram desta relação uma tradição, eles são "produzidos", "financiados" pelos "bicheiros", "donos de bingos e jogos eletrônicos", "narcotraficantes" e por aí vai.

O poder policial contaminado, faz eco protegendo a promiscuidade destas relações, diante da "galera" eles se exibem como hierárquico e contundentes, criam personagem e ações espetaculares. Nos anos 60/70 exibiam-se como os "homens de ouro" e estes logo depois ou ao mesmo tempo, se mostraram implacáveis homens do "esquadrão da morte", torturadores de cidadãos comuns e dos prisioneiros políticos.

Todos eles, acima da lei, inclusive criaram uma para se protegerem - a lei Fleury.

O morro - as 600 favelas cariocas - é aonde se encontram os moradores urbanos à margem da sociedade. E elas surgiram justamente para abrigar a massa de soldados que foram combater Antonio Conselheiro e seus seguidores, quando o massacre acabou eles retornaram para a Capital Federal com a promessa de receberem a justa e prometida recompensa do Estado. Enquanto a mesma não vinha, eles foram ficando...ficando... Até fazerem deste local um privilegiado ponto estratégico para vigiar a cidade "legal". Diante da avalanche dos confrontos armados à sociedade timidamente foi reagindo, o governo criando grupos táticos para combatê-los e a sociedade na expectativa para compreender o "por que" da sua existência.

A favela sempre foi romantizada (literatura, música e telenovela) como um lugar que mistura alegria, miséria e peculiaridades - Favela dos meus amores, Orfeu da Conceição, Rio Zona Norte, Rio 40 graus, O Assalto ao trem pagador, outros. Mas quando, em 2003, foi exibido o filme "Cidade de Deus", causou perplexidade, compaixão e análises acadêmicas. Este filme de Fernando Meirelles pedagogicamente contava a historia desde a origem à profissionalização de um grupo armado relacionado ao tráfico de drogas.


Uma curiosidade entre os dois filmes Cidade de Deus e Tropa de Elite, este conta com alguns dos mesmos profissionais daquela primeira produção, destacam-se o co-roteirista (Bráulio Mantovani) e o montador (Daniel Rezende). Nesta versão definitiva o filme Tropa de Elite se pode identificar o trabalho do Bráulio.

Caso o filme Cidade de Deus, de certa maneira, mostre para classe media a vida íntima daquela população que "a ameaça", este outro, a "Tropa de Elite" nos revela a vida íntima no interior de uma guarnição militar (BOPE - treinado para combater com tática e estratégia de guerrilha urbana). Este grupo se destaca daí auto denominar-se "elite", do geral da tropa da Policia Militar, aquela que deveria nos proteger contra a violência numa cidade aonde os números de vítimas se somam a uma guerra.

Mas ao refletir dramaticamente sobre essa guarnição, o filme de Padilha abre as entranhas dos policiais militares, suas relações promíscuas, corruptas e corrosivas. Recorrendo ao modelo dos filmes de ação roliudiano, o bem contra o mal, o mocinho (Capitão Nascimento, Wagner Moura) em conflito entre o dever e a sua vida pessoal familiar (a esposa e um bebê recém nascido). Um novato (Neto, Caio Junqueira) com cara de anjo desprotegido, gritando "mamãe!", o personagem com cara de estudioso e esforçado (André Ramiro, André Matias), ele deseja sair dessa para melhor socialmente, através dos estudos. Existem interesses contrários naquela micro-paisagem social brasileira - a universidade particular. Para se proteger o estudante esconde a sua profissão de policial, sim, porque polícia significa "sujeira", um paradoxo.

Entre mocinhos, bem intencionados e bandidos a vida carioca se desenha numa tragédia.

O filme abriu uma discussão apaixonada, e por isso mesmo cega sobre o tema. A leviandade de opiniões acabou por definir uma fronteira entre "intelectuais" e o "popular". Aqueles acusam Padilha de incorrer numa fascistização da violência declarada, celebrando a tortura. Ora, todos sabem que no cinema norte-americano, os grandes e consagrados diretores recorrem ao banho de sangue, a tortura física e psicológica para revelar as relações de corrupção entre a polícia e bandidos, corruptos e corruptores, podemos citar como exemplo: a saga dos Corleones "O Poderoso Chefão" (Coppola), Sam Peckinpah (Meu Ódio será tua herança, 1969; Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia, 1974; Elite de Assassinos, 1975). Este diretor nos anos setenta era acusado de fazer filmes que banalizava a violência. Brian de Palma (Scarface,1973; Os intocáveis,1987), Martin Scorcese (Táxi Driver,1976; Os Bons Companheiros,1990;Gangues de Nova York,2001), Tarantino e o seu cinema que carnavaliza o sangue e a violência (Cães de Aluguel,1992;Pulp Fiction,1994;Kil Bill,2003) entre outros.

No Brasil apesar da violência fazer parte do nosso cotidiano, a toleramos e negamos discuti-la como uma anomalia das relações sociais (o mito do "homem cordial", "democracia racial"). Vale lembrar que o cinema brasileiro sempre recorreu à temática do cangaço para refletir essa violência latente em nosso país, desde “O Cangaceiro”,1954) de Lima Barreto aos filmes de Glauber Rocha. Os personagens de "Lampião, Corisco, e Maria Bonita" de algum modo são explorados dramaticamente do ponto de vista da ambiguidade, numa mistura de bandido e herói.
No filme Tropa de Elite, o chefe dos bandidos, chama-se "Baiano" (Fábio Lago), o que indica que tem origem nordestina. Eis, uma outra metáfora no filme. Enquanto que os "bandidos" chamam os policias de "os alemão".

O CINISMO DE ABU-GHRAIB

Nos tempos de "cinismo" fica difícil falar na existência das diferenças entre violências, aquela a serviço de um futuro promissor, libertário e aquela outra exercida para dominar, colonizar e transformar pessoas e países submetidos aos interesses dos conquistadores; exercida com seu desprezo absoluto pelos valores humanos, pela cultura (própria e dos outros) e pelo passado são, provavelmente, a razão principal do surgimento desse preconceito contra o filme, como mostra claramente a história do povo brasileiro. Tudo isso, aliás, hiperbolicamente não é muito distante nem muito diferente dos fascistas religiosos, e na verdade faz parte, de forma mais ampla, do fundamentalismo intolerante que ameaça o mundo na era Bush; refiro-me aquelas cenas de tortura na prisão de Abu-Ghraib, elas lançaram um novo olhar sobre a pretensa superioridade moral americana. Aqueles soldados (a) norte americanos exibindo-se diante das câmeras como soberbos torturadores, verdadeiros astros e estrelas num filme de ficção, eles mocinhos e que no final serão celebrados como heróis, daí o exibicionismo narcisico seviciando seus prisioneiros como animais circenses.

Diante do cinismo hipócrita a tortura, nos dias de hoje, é conceito generalizado, sem diferenças e qualificações. Todas as pessoas que passaram por esse martírio, são colocadas numa taboa rasa, desde aqueles que lutaram contra a ditadura e que foram presos, desaparecidos, exilados, torturados, assassinados aos presos comuns.

Nesta mesma arquitetura de indiferenças, confabulações contraditórias e esdrúxulas que se cria o sofisma para dizer que a morte de Che Guevara, assassinado por mando dos interesses da Guerra Fria, tem a mesma importância que as motivações de transformação social, idéias estas, pelas quais levou seus algozes a assassiná-lo.

Vendo o filme Tropa de Elite e acompanhar aqueles indivíduos bem intencionados sendo treinados para zerar a sua autoestima em nome de uma espécie de sociedade secreta ("caveira"), chamados de "numero dois", "numero três" ou....Ocorreu-me lembrar daquele personagem das historias em quadrinhos, e que me fez dá boas gargalhadas na infância letrada, refiro-me ao "Recruta Zero" - soldado irresponsável e preguiçoso, mas bem-humorado. Criado como uma reação à convocação de um jovem estudante para lutar na Guerra da Coréia (1950-1953), o Recruta Zero passa seus dias no quartel a ter que aguentar as broncas do Sargento Tainha, este querendo a todo custo impor a sua autoridade e aquele o desobedecendo, por tanto o desautorizando.
"HORROR!" "HORROR!"

Neste jogo aprendemos que podemos suportar com certa artimanha determinados princípios da intolerância, mas tem um limite, neste caso dentro da carpintaria dramatúrgica num “gran finale”, mesmo que subjetivamente nós sejamos o alvo (culpados?). E aqui me refiro ao final do filme "Tropa de Elite" e que neste caso o personagem (André) apenas está nos mostrando a nossa esquizofrênica imagem no espelho da realidade.

E como ironia coincidente, aceito-a como mais uma das metáforas, no último festival de cinema do Rio de Janeiro em que "Tropa de Elite" abriu a temporada, ao final quem levou o prêmio de melhor documentário foi o filme "Condor" (de Roberto Mader) justamente sobre as forças intolerantes do "cone sul" organizadas oficialmente e internacionalmente ("esquadrões da morte") para eliminar fisicamente todos os oposicionistas aos regimes ditatoriais que fazia moda naqueles anos setenta, no Cone Sul (Brasil, Uruguai, Chile, Argentina e Paraguai) quando, segundo cálculos não ortodoxos, devido à Operação Condor, mais de 400 mil pessoas foram presas e 4 milhões exiladas.

Tropa de Elite, o filme, seja bem-vindo! Ribomba na minha cabeça aquela inesquecível e impressionante imagem do filme "Apocalipse Now" (adaptação livre de "O coração das trevas", JosephConrad), o coronel Kurtz, balbuciando "Horror!" "Horror!". Até hoje ninguem acusou o ator Marlon Brando ou o cineasta Francis Ford Coppola de fascistas e ou apologistas da violência.

Aurélio Michiles, outubro 2007.

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Nasceu em Manaus-AM. Cursou o Instituto de Artes e Arquitetura-UnB(73). Artes Cênicas - Parque Lage,RJ(77/78). Trabalha há mais de vinte anos em projetos autorais,dirigindo filmes documentários:"SEGREDOS DO PUTUMAYO" 2020 (em processo); "Tudo Por Amor Ao Cinema" (2014),"O Cineasta da Selva"(97),"Via Látex, brasiliensis"(2013), "Encontro dos Sabores-no Rio Negro"(08),"Higienópolis"(06),"Que Viva Glauber!"(91),"Guaraná, Olho de Gente"(82),"A Arvore da Fortuna"(92),"A Agonia do Mogno" (92), "Lina Bo Bardi"(93),"Davi contra Golias"(94), "O Brasil Grande e os Índios Gigantes"(95),"O Sangue da Terra"(83),"Arquitetura do Lugar"(2000),"Teatro Amazonas"(02),"Gráfica Utópica"(03), "O Sangue da Terra" (1983/84), "Guaraná, Olho de Gente" (1981-1982), "Via Láctea, Dialética - do Terceiro Mundo Para o Terceiro Milênio" (1981) entre outros. Saiba mais: "O Cinema da Retomada", Lucia Nagib-Editora 34, 2002. "Memórias Inapagáveis - Um olhar histórico no Acervo Videobrasil/ Unerasable Memories - A historic Look at the Videobrasil Collection"- Org.: Agustín Pérez Rubío. Ed. Sesc São Paulo: Videobrasil, SP, 2014, pág.: 140-151 by Cristiana Tejo.