
"Se o Brasil te conhecesse
antes do fim que se aproxima,
salvaria tua beleza? Teus seres desencantados?
Entenderia a ciência tua infinita riqueza?"
"Prece de amazonense em São Paulo" - Milton HatoumQuando criança, em Manaus, havia um menino muito extrovertido, falava pelos cotovelos. A sua desinibição fazia com que os adultos o adulassem, enquanto nós, os seus iguais o considerava um petulante puxa-saco. Ele costumava enaltecer as qualidades do poder da sua família. Segundo gostava de dizer, o avô era proprietário de um rio e nele navegava somente quem autorizasse.
Recordo-me de duas.
1. Para evitar que os índios e os caboclos não roubassem a produção de borracha, castanhas, peles de animais e peixes ele punia àqueles que ousassem desobedece-lo, eram amarrados num ninho de formigas tocandeiras (uma única ferroada o camarada dá gritos lancinantes) e assim eram deixados noite e dia...
2. O avô cortava as orelhas dos índios preguiçosos (sic) e as colecionava. Cresci assombrado pelas imagens desse circo dos horrores.
Mas enquanto crescia fui percebendo que essa era a lei, a normalidade das resoluções tomadas pelos "donos do poder". Fomentar o medo, cultivando uma espécie de terrorismo de estado.
Até hoje, tudo aquilo que os "civilizados" não compreendem como semelhante aos seus desígnios morais, eles denominam esse "outro" como selvagem, e isto tem sido cultivado como uma verdade desde a Antiguidade, sobretudo depois das "viagens de descobrimentos" - o Novo Mundo, desde então os europeus transferiram o seu imaginário do horror infernal para os povos que habitavam as terras novas. Daí, logo foram denominados como seres demoníacos, sem alma, uma mistura teratológica entre o homem e a besta.
Mesmo assim essa reinvenção do imaginário ameríndio encontra-se desde sempre envolto numa ambiguidade, por um lado o Novo Mundo é a terra dos seres mutantes, mas por outro é também uma espécie de Paraíso terrestre reencontrado, homens e mulheres nuas: calor, luxúria, prazer, profano e sagrado.
E este lugar, sem dúvida, hoje, refere-se à Amazônia, nome de batismo depois que supostamente foi visto mulheres com características ambíguas, entre a guerreira e a doméstica. Um mito emprestado da imaginação da civilização grega, inoculando o feminino no imaginário da maior reserva florestal do planeta: a Amazônia.
A chegada dos europeus na região amazônica é seguida de episódios de grandes crueldades, o massacre e extinção da maioria da sua população original, e após o seu domínio alimentou preconceitos contra os povos indígenas e seus descendentes. Tudo isso não é igual quanto a recorrente reinvenção do seu imaginário: a exuberância da paisagem e dos seus recursos naturais em contraste com os meios de sobrevivência da sua população carente.
Uma das maiores indiferenças as condições de trabalho e sobrevivência na Amazônia deu-se na década de 80, com aquela visão espetacular de um dos maiores exemplo de escravidão à céu aberto do século XX, refiro-me a Serra Pelada, no Pará, onde mais 80 mil garimpeiros pareciam um formigueiro de seres humanos, revolviam a terra em busca de fortuna, misturados a lama arrancavam o ouro com as próprias mãos.
Aqueles "homens-formiga", pessoas que carregavam os sacos que chegavam a pesar 50 quilos de barro, faziam, em média, dez viagens por dia pelas encostas íngremes do enorme buraco. Neste abismo muitos desabavam de cansaço, soterrando-os. Entre os anos 1980 a 1982, a Serra Pelada produziu 40 toneladas de ouro. Depois da exaustão da exploração manual, milhares de trabalhadores foram lançados a própria sorte, logo depois chegou as máquinas.
Hoje, a enorme cratera é a testemunha de uma perversa e desoladora realidade do trabalho escravo na Amazônia. Mas este é um dos inúmeros episódios que insiste na sua permanência.
TERATOLÓGICOS DE ABAETETUBA
Nas terras cuja padroeira é N.S.Nazaré, da governadora paraense Ana Júlia, de uma juíza, de uma delegada, nesta mesma região das amazonas, na cidade de Abaetetuba, no estado do Pará um fato chocou a opinião publica nacional e internacional.
Uma adolescente de 15 anos de idade, acusada de roubo e vadiagem, foi jogada numa cela de cadeia aonde teve que conviver com outros 20 presos, homens, durante quase um mês. Portanto, eram vinte homens e uma mulher. Já imaginou o dia a dia de convivência, nesta minúscula cadeia?
E o pior é que a cidade de Abaetetuba era cúmplice, sabia da existência desta ignomínia, mas silenciou-se.
Esta história me fez lembrar o filme "Mouchette, a virgem possuída" (*). Neste filme o diretor Robert Bresson coloca em evidência, de maneira implacável, a miséria e a crueldade, através da trágica história de uma menina camponesa solitária que vive com seus pais numa casa modesta. Seu pai é alcoólatra e sua mãe não tardará a morrer. Ela é violentada por um caçador.
O ASSASSINO VIRA INOCENTE
Tambem no Pará, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, "o Bida", que em 2007 foi condenado à 30 anos de regime fechado, por ter sido o mandante do assassinato da freira Dorothy Stang (Anapu-PA), cumpriu um pouco mais de três anos da sua sentença, quando para perplexidade de todos (maio de 2008) ele foi absolvido e solto, depois que Amair Feijoli da Cunha, o Tato acusado de intermediar aluguel de pistoleiros, mudou o seu depoimento aonde confessava ter sido contratado pelo fazendeiro "Bida". Isso mesmo, desdisse o que havia dito em juízo. Diante deste fato o Tribunal do Júri de Belém em sua esmagadora maioria deu inocência ao fazendeiro, e este imediatamente deixou-se fotografar comemorando o resultado.
Escárnio? Impunidade recorrente. (***)
Faz-se necessário lembrar que não se tem noticia de algum mandante de eliminação física de um líder indígena, sem-terra, religioso ou militante de entidades que defendam os interesses das populações pobres da Amazônia que tenham sido presos, condenados e cumprido a sua sentença. Vide o famoso assassinato do líder seringueiro Chico Mendes (1944-1988), hoje um mártir, mais a sua morte foi anunciada, e chegou a ser publicada com antecedência nos jornais do Rio Branco, no Acre. E o massacre (1996) do Eldorado dos Carajás? Os mandantes e comandantes uniformizados/ ou não, continuam impunes.
Nos jornais de ontem (07.maio.2008) um bispo revela que existem 300 religiosos ameaçados de morte, sendo que 100 deles, incluso ele próprio, acostumou-se a conviver com seguranças que os protegem 24 horas.
ÍNDIOS, ARROZ E BOÇALIDADES
Em Pacaraima, cidade de Roraima, um fazendeiro/prefeito se arroga no direito criar uma força paramilitar, armar-se com fuzis e pistolas, invadir aldeias indígenas e atirar à esmo como estivesse em pleno oeste norte-americano, mas na verdade é a reserva indígena Raposa Serra do Sol, portanto a sua e outras fazendas encontram-se aí irregularmente instaladas, sujeitos a responder por invasão de território indígena. Este é mais um episódio entre muitos que se arrasta pelos tempos, os invasores e corruptores tentam a qualquer custo desqualificar o direito ancestral das populações indígenas.
Esta atitude não é nova, nos tempos da ditadura, o senador mato-grossense Gastão Muller declarou, "se os fazendeiros quisessem, poderiam ter partido para uma luta armada, e seria muito fácil vencer os índios".
Os índios Ianomâmis, habitantes de Roraima, depois de três décadas vendo a sua população diminuir substancialmente por causa do contato com os 30 mil garimpeiros que invadiram o seu território, contaminando as águas dos seus rios com mercúrio, eles finalmente no inicio dos anos 90, depois de sofreram uma campanha indiscriminada e preconceituosa contra os direitos ancestrais sobre aquelas terras, tiveram a sua área demarcada e homologada. Logo depois sofreram um massacre (Haximú,1993****), mesmo sem a punição dos seus algozes, hoje, esses índios vivem numa relativa situação pacifica. Os interesses encontram-se focalizados sobre as terras dos povos indígenas que habitam a Raposa Serra do Sol.
Cair em tentação em desqualificar os povos indígenas é desconhecer a maioria da população amazônica, sobretudo no Amazonas e em Roraima?
Defender os interesses duma minoria...Sem sequer resguardar os interesses dos habitantes originais, sob o "fajuto argumento de soberania"? A maioria dos integrantes da tropa do exercito brasileiro na fronteira é composta por índios /ou descendentes diretos da primeira geração.
Na Amazônia tem índio com PHD, tem índio professor, secretario de estado, tem índio sacana e bajulador, são como nós mesmos...
Ora, esse território Raposa Serra do Sol, em Roraima, pertence aos povos indígenas que o habitam faz milhares de anos, e aí desenvolveram um modo de viver, uma civilização autentica. O mínimo que os invasores teem a fazer é sair deste território.
Caso os fazendeiros queiram plantar e colher arroz ou soja, que o façam, porque não?Desde, é claro, que paguem um tributo por isso, afinal a terra já tem dono.
ÍNDIO MEU PAI, MINHA MÃE
Todos estes fatos acontecem numa mesma região com 5,1 milhões de quilômetros quadrados e que correspondem a 60% do território nacional. Mesmo assim a questão em se ter um pedaço de terra é como se aqui realmente fosse, na primeira visão dos navegantes lusos, uma ilha, a Ilha de Vera Cruz. Cruzes!
Créditos:
*Foto/fazendeiro Bida e advogados: Ary Souza/"O Liberal".
**Mouchette, a virgem possuída" (Mouchette, de Robert Bresson. Dur.87', França,1967).
***Segundo levantamento da CPT - Comissão Pastoral da Terra, entre 1971 a 2007, houve 819 mortres em razão de disputas de terras no Estado do Pará. Apenas 92 casos resultaram em processo. Apenas 22 tiveram julgamentos do Tribunal do Júri - nesses, seis mandantes foram condenados.
No entanto, não há nenhum deles preso. (FSP,9.maio.2008)
****Realizei na época o documentario "Davi Contra Golias" , 10 min. (Prêmio Margarida de Prata-documentario). Prod. Instituto Socioambiental.
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